Não encontrava o amigo há tempos. A lembrança que guardava dele é a de uma pessoa bem-humorada, sempre pronta a brincar com as situações mais prosaicas. Estar ao seu lado sempre foi uma diversão. Leve, transformava as horas em minutos. Parecia não conhecer adversidade que o abatesse. Porém, como sempre, muitas coisas não são o que parecem. Problemas de ordem afetiva e financeira o levaram à derrocada. Neste meio tempo, encontrou-se com um colega de escola que lhe falou da salvação de sua vida: frequentar uma igreja. Resistente no início, não viu porque não experimentar, já que tantas portas estavam se fechando. E eis que, como num passe de mágica, o milagre se fez: tudo começou a readquirir ordem e sentido e hoje se diz um homem feliz e abençoado. À custa de dez por cento de seu salário e mais umas pequenas demonstrações materiais de sua fé. Afinal, só quem oferece em abundância, em abundância receberá. Diz da sua conversão como o passo mais importante que já deu na vida e hoje é capaz de atravessar o Brasil para assistir a palestras de expoentes da seita. É, em suma, uma criatura que encontrou o Caminho.
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Como sou daqueles que perdem a amizade mas não a piada, recheei nossa conversa com uma boa dose de ironia. Que caía no vácuo à medida em que cada frase ia sendo proferida. Aos poucos, fui me convencendo da importância dessa nova realidade em sua existência. O negócio era sério mesmo. Fui recolhendo minhas palavras e deixando que ele falasse e falasse, citando salmos e outras passagens da Bíblia. Foi uma tentativa meio doutrinadora, sem dúvida, como costuma acontecer toda vez que encontramos alguém ungido pela Verdade. Por outro lado, percebi tanta convicção, tanta certeza em seu discurso que pensei: quem sou eu para dizer que ele está errado? Não será o primeiro e nem o último a sofrer esse processo de transformação radical por vias espirituais. Simpatizo mais com quem não mistura dinheiro e transcendência. Mas, pensando bem, poucos pregadores não fazem isso. Muda apenas o marketing e a agressividade com que somos induzidos a nos tornar sócios (minoritários) de Deus. Um ponto, no entanto, não pode ser questionado: sofrendo uma espécie de lavagem cerebral ou simplesmente abrindo uma janela de esperança, muitos se tornam seres mais éticos e se afastam dos seus vícios. Mesmo que para isso passem a medir seus comportamentos pela rigidez da punição e o afloramento do medo. Bem, algum preço sempre se paga.
Continuo na confortável posição do agnóstico: não afirmo e não nego. Mas, depois de ver o que fizeram com algumas pessoas próximas, não serei eu a dizer que esse remédio faz mal. Só gostaria que não o prescrevessem a mim. Por enquanto, pelo menos.
Opinião
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Gilmar Marcílio
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