A jovem que morreu estupidamente domingo passado em Caxias, arrastada por um carro, não teve velório. Consta que foi abandonada pela mãe no hospital. A vida de Angélica é uma história de abandono – começo, meio e fim. Não se sabe quem lhe deu o nome ao nascer, mas certamente notou nela alguma relação com o angelical. Assim, um nome foi escolhido, e a escolha de um nome é, afinal de contas, uma crença na vida. Em uma das poucas imagens dela, há o esboço de um sorriso ainda suave e de alguma expectativa que não se confirmaram. Em algum momento ou fase da vida, teve o acolhimento de avós, mas até essas referências familiares, e de colegas, eventuais amigos ou meros conhecidos foram se perdendo pelo caminho, e Angélica foi ficando só, desarmada para enfrentar a dura realidade. E ela permanecia só quando, de alguma forma, houve a fatídica aproximação com o motorista que passou a dirigir velozmente o carro onde ficou enganchada no domingo passado pelas ruas do bairro Marechal Floriano.
Nos entremeios da vida, também Angélica não foi notada pela sociedade, quer pelas pessoas que cruzam por outras pessoas sem prestar atenção e já naturalizaram a indiferença, quer pelas estruturas e serviços que devem identificar carências e situações de vulnerabilidade e garantir o apoio possível. Se houve algum atendimento ao longo do caminho, e até houve, ele não foi o suficiente para impedir que terminasse só e sem proteção.
Mas não ficou nisso. Angélica não foi notada mesmo depois de seu fim. Sua morte, do jeito que foi, não gerou maiores reações na sociedade, sob o ponto de vista da indignação, das responsabilidades e da reflexão sobre o que aconteceu, sobre a trajetória de vida de Angélica e sobre a desatenção a ela. Sobre como chegamos a esse desfecho. Produzimos esse desfecho, meticulosamente, e ele ainda é naturalizado como mais uma morte violenta entre tantas, e vida que segue.
Há uma arma poderosa para situações como a de Angélica, para oferecer algum amparo, e ela está ao alcance de qualquer pessoa. Mas antes, a vulnerabilidade precisa ser detectada. Por cada um de nós, pelos serviços, administrações públicas e entidades e instituições de apoio. Essa arma é a atenção individualizada, que significa ouvir, dar atenção. É preciso humanizar nossos olhares, para identificar quando outras Angélicas se aproximam, quando cruzamos por elas, e oferecer, então, a atenção individualizada. A Angélica que se foi, só a descobrimos quando o carro em que ela estava enganchada parou, e ela já estava toda estropiada. Foi esquecida do início ao fim, e até depois do fim.