Os gaúchos inflam o peito e têm especial predileção pela parte do Hino Rio-Grandense que diz: “Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra.” Esso trecho induz a um orgulho exacerbado, com o que se deve ter muito cuidado, sugerindo realçar uma faceta do gaúcho, da gaúcha, que é uma entre tantas facetas, dando a ela preponderância e hegemonia quando se tenta definir o que é ser gaúcho. Há aí o risco de cometer-se uma imprecisão fatal, o que não é bom para nosso autoconhecimento, sobre quem e como somos, como população de um Estado que, sim, também tem razões e motivos para se orgulhar. Mas não só. Nós, gaúchos e gaúchas, também temos nossas mazelas, e como as temos! E devemos refletir sobre elas, para melhorar.
O Rio Grande, os gaúchos passaram vergonha monumental esta semana com as manifestações de racismo explícito contra Seu Jorge em um clube de Porto Alegre. Um preconceito, uma discriminação racial, um crime de repercussão nacional. Um fiasco. O governador do Estado precisou ir à tevê para pedir desculpas em nome do Rio Grande do Sul. A que ponto chegamos com a atitude de determinados gaúchos que talvez imaginem ser essa uma façanha a ser exportada, a servir de modelo a toda a Terra.
Os gaúchos são responsáveis, assinam suas façanhas, e que bom, mas também nossas mazelas. Não somos nem melhores, como induz o trecho do hino, nem piores do que ninguém, do que moradores de outras regiões do país e do planeta. Somos, sim, diferentes, a partir das nossas diferenças, e essas diferenças é que são as nossas riquezas. Mas diferenças, as boas diferenças, todos os povos as têm, cada um a seu jeito. Passa pela cultura regional que construímos, pelo chimarrão, pela relação com a terra e o trabalho, por nossas vivências, pelo nosso jeito de ser. Façanhas as temos também, e merecem ser destacadas. Será oportuno, no entanto, entender, conceituar bem o que se entende por façanhas, e não fechar os olhos às mazelas que produzimos. E não se entender melhor do que ninguém. Essa é a grande armadilha que nós, gaúchos, nos colocamos.
Hino é símbolo gaúcho. Outro símbolo, a bandeira, ilumina quais podem ser nossas façanhas. Nela está escrito: “Liberdade – Igualdade – Humanidade”. Naquilo que dignificam a existência, o exercício dessas palavras na construção cotidiana de nosso Estado é uma façanha, todo dia. Façanha não é demonstração de força. Normalmente, à direita e à esquerda, parecemos destacar mais as duas primeiras, mas, não por acaso, humanidade está ali, como terceira palavra, a última delas, como ponto de convergência. É preciso humanizar nossas vivências, nossas relações, garantir condição de humanidade, de dignidade às pessoas. Uma façanha a servir de modelo, assim como o exercício da solidariedade, da generosidade da alma para perceber e atender a amplitude das necessidades humanas – de todas as pessoas, e não só de algumas. A preocupação com o outro como expressão da generosidade, que bela façanha!
E vamos refletir sobre nossas mazelas e nossas vergonhosas vergonhas. Como a desta semana que passou. Junto-me ao coro dos que pedem desculpas a Seu Jorge.