O futuro é um tema instigante. Particularmente nesta época do ano, quando entra dezembro e habitualmente estamos mais preocupados com amigos secretos e pinheirinhos de Natal. Mas ainda andamos às voltas com o presente, com 2020. Estamos em dezembro de um ano frenético, avassalador, que nos colheu como um tsunami, em que fomos atropelados por macroacontecimentos e ainda estamos desnorteados, tentando encontrar algum caminho. 2020 está em curso, e não bastasse todo o resto, guardou-nos para a reta final os espancamentos que causaram as mortes de João Alberto no Carrefour de Porto Alegre e de Arlindo Pagnoncelli, o Zinho, em uma praça de Nova Prata. Desnorteante!
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Nesta época, costumamos pensar no futuro. Houve até um jingle histórico na tevê que se repetia todo ano, que acompanhou gerações: “O futuro já começou.” Agora, sintomaticamente, ele quase não toca mais. Talvez seja premonição, pois o futuro, sejamos realistas, o futuro não começou.
Futuro é um tema aberto, que se presta a conjecturas, mas também a produtivas reflexões sobre a realidade. Vejamos uma pequena seleção. “O futuro não é mais como era antigamente.” (Renato Russo). E como era o futuro antigamente? O futuro era o futuro, onde se projetavam ideais generosos. Isso praticamente acabou. Não é mais como era antigamente. “Eu vejo o futuro repetir o passado / Eu vejo um museu de grandes novidades.” (Cazuza). Se contemporâneo fosse ele da parafernália tecnológica dos dias de hoje, Cazuza veria sua profecia se materializar. Um museu de grandes e sedutoras novidades. Porque o que importa é o que vai dentro do invólucro, das ferramentas tecnológicas, e aí o futuro repete o passado. O outro não importa.
Há uma frase estendida na frente do Hospital Pompéia que é de uma clareza definitiva sobre os dias que estamos vivendo. A faixa diz: “Evitar aglomerações é um ato de amor ao próximo.” Simples assim. E não é preciso dizer mais. A pandemia escancara, ou desnuda, o nosso déficit, a nossa dívida de amor ao próximo. A solidariedade, apesar de real e imprescindível, está perdendo o jogo. E solidariedade, como sabemos, é só o balde que recolhe a água que pinga da goteira. Não é possível esboçar o futuro sem amor ao próximo, sem valorização do outro. De volta a Renato Russo, ele acompanha Cazuza, com outras palavras: “O que aconteceu ainda está por vir.” Sem valorização do outro na prática, o que já aconteceu vai se repetir. Tristemente.
Ainda assim, como dizia Russo, é teimoso e resistente o “vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo o que eu ainda não vi.”
Ah, o futuro... O futuro não é mais como era antigamente. O futuro não começou.