Está abrindo espaço em Caxias do Sul aquele cenário de despreocupação e subestimação à pandemia que nos acostumamos a ver no centro do país em doses industriais, com praias e bares lotados. A onda chegou aqui, guardadas as proporções, é claro. Mas o espírito que move esse comportamento, que revela, na prática, uma postura de desvalorização à vida, está disseminado entre nós.
A bem da verdade, a negligência diante da pandemia ocorre desde abril. Distanciamento social em Caxias só houve algum na segunda metade de março. Logo as coisas voltaram ao normal, e flagrantes de ruas cheias ocorrem desde então. Mas se mantinha até há pouco uma formalidade mínima, garantida porque nem tudo estava liberado, o que causava protestos. Agora, porém, chegamos à fase do liberou geral. E quem disse que a pandemia está recuando? No país, certamente diminuíram os registros de casos e óbitos, mas ainda em nível elevado. Porém, em Caxias, o mês iniciou-se com 472 casos ativos, número que dobrou para 954 no fim de semana. Mas quem liga?
No fim de semana agora, dois estabelecimentos tradicionais da vida noturna caxiense funcionavam sem preocupação com respeito às formalidades e protocolos para dias de pandemia, admitindo coisas assim como permissão para aglomeração nos acessos, mesas todas ocupadas, sem distanciamento, ocupação plena dos espaços. É importante este detalhamento sobre o que foi encontrado pela fiscalização, pois é revelador. Se a fiscalização não interviesse, seguiria a vida.
A questão que sempre intriga é quais mecanismos mentais são percorridos pelo raciocínio individual para autorizar comportamentos, práticas e atitudes que revelam associação e adesão ao risco do contágio, fortalecendo essa possibilidade. Lá no final desse percurso mental, uma atitude é tomada, que coloca em risco as vidas de outras pessoas. A consequência é a exposição da vida, com antecipação da perda de muitas delas, desdobramento lógico que tantos resolvem deliberadamente ignorar.
Sair não é problema. Ninguém é de ferro. Mas a escolha de sair assumindo potencial desprezo pela vida é realmente intrigante. Por que isso ocorre? Como isso se dá? Entre as resumidas respostas, está aquela noção equivocada de incolumidade que costuma nos acompanhar. Em geral, acreditamos que vamos passar incólumes por mais essa. Não acontecerá comigo o que acontece com os demais. Outros desligam o botão da noção de consequência, o que não os exime. E há os que fazem por opção assumida, sem preocupação com os outros.
É um mito aquela ideia de que a solidariedade é um valor, uma postura predominante entre nós. Não é. A pandemia nos desnuda. O que se sobressai com força são o desprezo e a desvalorização da vida. Não chega a ser novidade.