Eu ouvi uma música de Gal Costa, ou um fragmento dela, no rádio semana passada. Isso é um acontecimento! Gal Costa tocando no rádio. É algo simplesmente fora do propósito a que temos sido submetidos, fora do propósito do “novo stablishment”, diante do “novo normal” da música brasileira, que se instalou já faz mais de uma década, com estragos generalizados, mas subestimados ou ignorados. Não se trata de virar o canhão para lado nenhum, mas de lamentar a falta de pluralidade da oferta musical que passou a reinar.
Então surgiu a voz inconfundível de Gal Costa no rádio, a jorrar pelos fones de ouvido. Quase me belisquei. Em outros tempos, Gal surgia com frequência no set list diário, a enriquecer ambientes e o cotidiano com sua sonoridade única, com sua música e sua voz sempre aberta, melódica por si só e derramada generosamente, provocando sensibilidade, requebros & maneiras e imaginações. Traduzindo: tocava direto nas rádios. Mas de décadas para cá, espantaram Gal do set list. Isso nos explica, explica o estágio a que chegamos, ah, isso nos traduz.
Claro que Gal Costa está aí pulsante, com sua discografia recente, a massagear espíritos. Mas essa produção tem sido deixada distante, escondida ou sonegada a larga faixa da população. Gal personifica aquele perfil de cantores e cantoras que foram mais “esquecidos” pelos programadores das emissoras de maior audiência ou programas de tevê. Faça um teste: você viu Gal cantando na tevê recentemente? Quando foi a última vez?
Pois semana passada fui alcançado inesperadamente pela voz de Gal. Ela completou 75 anos no sábado, data importante, a motivar a lembrança, uma homenagem singela, um tanto isolada, pois muito mais não se viu por aí. E surgiu cantando uma música de Caetano Veloso – Vaca Profana, melodia que se ajusta admiravelmente à voz de Gal. Cantava uma letra que, sintomaticamente, fala em “manada” – “Vaca profana, põe teus cornos pra fora e acima da manada”. Eis um termo de nosso tempo político e social: “manada”, assim com o correlato “gado”, outra expressão popular. Esse último termo, passivo; aquele outro, ensandecido, automático; ambos, irrefletidos. E já que é para lembrar, Zé Ramalho cantava: “Eh, ô, ô, vida de gado, povo marcado, eh, povo feliz.” Admirável gado novo.
“Manada” e “gado”, logicamente, são conceitos pouco afeitos à reflexão. Politicamente, podem estar associados ao presidente Jair Bolsonaro, à Operação Lava-Jato, à esquerda tradicional, aos que se dizem de centro ou do Centrão. Não importa. O que importa é a capacidade de reflexão, tão necessária aos nossos dias, mas desestimulada há anos, como prova a música de Gal Costa sonegada do set list que toca por aí, do “novo normal” da música nacional.