Estamos vivendo intensos dias de cerração. Desde a semana passada, não tem dado trégua. Faz parte, é nossa velha conhecida. Vai além da presença no cotidiano invernal, quando se estende ao longo do dia e pode baixar a qualquer hora. A cerração encharca nossa alma, é nossa vivência de anos. Está no nosso DNA, faz parte de nossa identidade regional. E quando combinada com o frio que roça a pele, imprime uma sensação positiva de sobrevivência e aptidão para a hostilidade do clima.
Os vultos surgem nas esquinas, nas calçadas, à medida que nos aproximamos. Deixam espessas camadas de cerração e se apresentam saídos delas, de uma hora para outra. No denso nevoeiro, quase não se lhes enxerga a fisionomia ao passar, apenas a unidade física de um indivíduo, uma individualidade, uma cidadania. Em geral, os passantes aparentam mais elegantes na cerração. Apesar de levemente encolhidos, a figura impõe-se no nevoeiro, surgem aparentemente mais firmes, ganham em postura. Quando vestem roupas coloridas, ou algum adereço, oferecem o contraste com o cinza, marcando a passagem.
É outra beleza. Acostumados que estamos à familiaridade dos cenários límpidos, somos contemplados com a diversidade climática e urbana. Diversidade sempre é bem-vinda. A cidade deixa provisoriamente as cores marcantes e os detalhes visíveis e mergulha no cinza, com suas peculiaridades, seu ambiente próprio e os realces de outro tipo, como o dos vultos que surgem, não raro equilibrando sombrinhas ou guarda-chuvas, com boa dose de compenetração. Afinal, é preciso se movimentar em um espaço incerto. Pode haver defeitos nas calçadas, atravessar a rua requer atenção redobrada, trafegar na 122, então, é uma roleta russa pela falta de marcação na pista, a chamada sinalização horizontal. Sabemos bem desse estado de alto risco típico de nossas rodovias.
Quando pequeno, na minha cidade, longe de tudo, observava do chão os aviões que entravam em nuvens, e aquilo era um certo mistério para uma criança. Como seria lá dentro? Como seria estar dentro de uma nuvem? Pois bem, está respondida a curiosidade da infância: é a cerração.
Da realidade ambiental para a realidade da pandemia, os dias, igualmente, são de intensa cerração. Como se estivéssemos ali na 122, sem marcação no asfalto. Não se enxerga direito o agora, a semana seguinte, não se vislumbra o que vem por aí. A gente aqui da Serra sabe como é ter de se movimentar na cerração, as cautelas necessárias. Mas os brasileiros se movimentam como se cerração não houvesse e a visibilidade fosse perfeita. Agora, no feriadão, invadiram praias e bares, em multidões. Desnudam-se no desrespeito a grupos de risco e profissionais da saúde. Parecem ignorar a essência das cerrações.