A dor de quem sofre é muito antiga, diz uma música que eu gosto. É tão velha quanto a humanidade e anterior ao nome pelo qual ficou conhecida e passou a ser tratada pela medicina.
Na Idade Média, a tristeza paralisante, causadora da morte do afeto, era conhecida como “o demônio do meio-dia” (the noonday demon). Música que traduz o lamento da alma diante da opressão do patrão ou do coração partido, o blues surgiu no século 19 e tomou seu nome emprestado dos “blue devils” (demônios azuis), expressão usada por escritores e poetas ingleses desde o século 17 para diagnosticar o sujeito tomado pela melancolia. Por não se saber de onde vinha aquele tormento pesado como a vida, era atribuído aos maus espíritos. Estar possuído por aquele sentimento arruinante era estar com “os blues”.
Duas semanas atrás, conversei com a filha de um pai de santo em uma comunidade quilombola. No seu terreiro havia centenas de fotografias, arranjos de flores e panos bordados com inscrições de graças que ele teria alcançado. Fiquei arrepiado com o relato da moça, quando ela me explicou que a maior parte dos que procuravam o seu pai, já falecido, queriam que ele tirasse delas aquela coisa ruim que não sabiam o nome. "Gente com um sentimento estranho, que não sabia de onde vinha. Uma angústia. Chamavam de assombração", ouvi, espantado por essa ligação entre a tristeza e as forças ocultas, tão antiga, estar representada num depoimento tão próximo.
A depressão afeta a alma, mas nasce no cérebro. Pode ser combatida com remédios e com terapia, mas antes de tudo vem a informação. Metade dos brasileiros não sabe o que é a doença, segundo apontou uma pesquisa divulgada esta semana. Ouvi com tristeza o relato da moça, pois depois soube que aquela comunidade é marcada por altos índices de suicídio e alcoolismo. Para curar a alma as pessoas procuram pais de santo, tomam passe nos centros espíritas, se purificam com chás, conforme suas crenças. São aliados da ciência, assim como também são aliadas a arte e a cultura.
Minha melancolia eu acalmo nos livros e na música, minhas impurezas procuro expelir pela conversa ou pelo texto. Nossa vida deve ter lugar para a tristeza e a função social da tristeza renderia outro texto. Mas ela não pode ter sua origem desconhecida e nem ser atribuída aos maus espíritos. Embora dê uma boa letra de blues.
Leia também
Adriana Antunes: roupas coloridas
Vitrine Conceito expõe obras da Marília Chartune
Instituto Quindim, de Caxias, reúne trabalhos artísticos em defesa da Amazônia
Viver e morrer no "Matão": Heranças da escravidão em uma comunidade quilombola na Serra