Não, não foi eu quem disse, foi Cecília Meirelles, a vida só é possível quando a reinventamos. Turvo é o céu que insiste em permanecer cinza e molhado. As janelas embaçadas escondem o que há pelo lado de dentro. Somos nós, pessoas anuviadas, turvas, que andam de um lado para o outro em busca de algo. As ruas apressadas embaralham os carros em horários de picos. Eu só espero o sol. Espero como uma criança espera o primeiro dia de férias. Queria que meu pai fosse vivo para contar das coisas que tenho visto, sentados na sacada entre cuias de chimarrão. Mas ele não está e eu me calo. Tem coisas que só tinha com ele. E se você já teve alguém assim e perdeu, sabe do que falo. Contra o muro do mundo as pessoas seguem acreditando mais no que querem no que de fato acontece. Às vezes penso que não há remédio para isso. Me sinto cansada e penso, quem não?
Cada um tem feito, a sua maneira, algo para amenizar essa dor que nos acometeu no começo de maio. E maio nunca mais será o mesmo, pelo menos para nós, gaúchos. Quantos dias dentro de um único mês. Como fazemos para a roda da vida voltar a girar? Perdemos tanto. As águas começam a baixar, aos poucos, e do que importa manter um nome se o teto ficou debaixo da água, se as vigas ficaram à mostra, se as paredes se despiram dos quadros, fotos, intimidades, se a casa pelada e suja parece ter sido abusada e abandonada?
Mas a vida explode em cada canto das cidades, bairros mais afetados. Gente que não se conhece se une e, de modo muito acolhedor, ajuda a recompor o que é possível, mostrando que apesar de sermos estranhos, somos iguais na dor. E aonde o amor não chega, os dias ficam mais pobres. O que restou de tudo é sujo e impuro, tem doenças, tem cheiro ruim demais, mas é preciso amar de volta. É preciso reaprender a amar este chão para poder sonhá-lo de outro modo. O sol que tanto desejamos é o de dentro, aquele que nos incendeia depois do luto.
Há um novo vocabulário que começa a ser dito. Nunca ficamos tão próximos daquilo que a ciência diz das mudanças climáticas. Nunca estivemos tão perto da ideia de que precisamos eleger políticos comprometidos com isso. Sim, mais árvores e menos burrice, que me perdoem os que se sentirem ofendidos. Há determinados postos e cargos em que se deveria fazer um teste de capacidade cognitiva e de caráter para se assumir. Estamos longe de um ideal de vida conectada com as demandas da civilização sem que se massacre o meio ambiente, mas há mudanças que podemos implementar desde já, como por exemplo prestar atenção e ser seletivos com relação aos discursos e práticas dos políticos, bem como da iniciativa privada.
Reinventar a vida passa por percebermos que precisamos mudar. Sem essa primeira constatação nada ocorre. Só muda quem está vivo e conectado com a realidade, ou seja, não está alheio a tudo que acontece ao redor, por mais trágico que seja. Se não nos auto enganamos. É preciso cuidado, amanhã pode não ser um outro dia.