“Quem entre o Homem e o animal é verdadeiramente uma besta?”. A frase é do escritor congolês Alain Mabanckou, autor de vários livros, entre eles, Memórias de um porco-espinho. Uma frase que nos põe a pensar, ou pelo menos deveria, já que somos uma raça que se diz portadora de inteligência. Balizamos quem somos e quem são os outros, inclusive os animais, a partir da nossa falsa onipotência de nos acharmos superiores a eles. Ideia essa que corrobora com outra sentença prepotente, de que os animais estariam aqui para nos servir. Basta uma brevíssima incursão pela História, para avivar a memória, e ficaríamos chocados como esse discurso discriminatório serviu de ideologia para produzir crimes de todos os tipos. Esse antropomorfismo logocêntrico ratifica cada vez mais uma cruel e progressiva conversão do discurso dominante sobre os animais em discurso dominador, deflagrando práticas de violência contra esses e outros seres. Cito Margherite Yourcenar, escritora belga, já que estou literária, embora nada poética, em seu O tempo, esse grande escultor, “...haveria menos crianças mártires se tivesse havido menos animais torturados, menos vagões lacrados levando para a morte as vítimas de uma ditadura qualquer, se não tivéssemos nos acostumados com os furgões em que os animais agonizam sem alimentação e sem água a caminho dos matadouros, menos caça humana teria sido abatida a tiros se o gosto e o hábito de matar não fosse o apanágio dos caçadores”.
Pensar na causa animal, preocupar-se com o que está sendo pesquisado sobre o assunto, nos permite realizar, de fato, o que chamamos de alteridade. Palavra fundamental em essência e difícil de pôr em prática. Afinal, muitos dirão, para que dar espaço para este tipo de assunto? Se verdadeiramente somos superiores a eles, porque maltratamos, machucamos, matamos, torturamos seres que não conseguem se defender da força e da brutalidade que somos?
Há uma parte humana muito ruim. Há dentro de nós uma maldade sem tamanho e que se revela todos os dias, de todas as formas. Tentar entender do que se trata este assunto é aceitar colocar-se numa outra posição, a de tentar olhar para o assunto do ponto de vista do animal. O que eles diriam de nós? Este é um exercício não só de subjetividade, mas humano. Nos escondemos na ideia de que os animais não pensam, não sentem para que possamos viver sem culpa diante das atrocidades que cometemos. Nós os usamos, exploramos, maltratamos, abusamos. E se alguém levanta a bandeira de proteção, criticamos hipocritamente, dizendo que há outras causas mais importantes do que esta. Não dar-se conta do quanto somos violentos ao desprezar esse assunto, expomos nossa ferida narcísica e não enxergar isso é um sintoma. Que isso ainda não tenha virado uma pauta, é outro.
Yourcenar foi cirúrgica. Não há como impedir que a violência se alastre em todas as direções, atingindo a todos, se não reconhecermos o quanto somos perversos justamente com os bichos. Quem é a besta mesmo?