As beiras da estrada. As beiras de rios. As beiras de sonhos. As beiras do medo. As beiras da vida e da morte. As beiras dos fatos. A beira da sociedade. As beiras da espera. De certo modo vivemos pelas beiradas a vida toda. Beiradas metafóricas e reais. No concreto do dia alguns perdem tudo quando as cheias acontecem e as beiras são engolidas. Gente que não se sabe o nome, mas se reconhece o grito. Gente que não se sabe quem é, mas sabemos da dor porque somos feitos da mesma matéria. Pelo rio se vão o dia, a noite, a memória. Cidades cobertas de água até os telhados. Lama, sujeira, restos. Há dias andamos pelas beiradas acompanhando as notícias sobre a enchente do Vale do Taquari. Percorremos juntos as beiradas desaparecidas pela enchente que tudo levou. Levou corpos, animais, vidas, casas, amores, histórias, sonhos. Beiradas que perderam o contorno. Espaços inundados pelo desespero, tristeza, falta de socorro. Enchente que levou o sorriso e deixou o choro, que levou os desejos mas deixou a coragem de recomeçar, que levou as beiradas mas trouxe a solidariedade.
O dia amanhece, é quarta. Um dia após o rio subir, subir e carregar em suas águas o que encontrava pela frente. O que resta é um assombro. Tudo perdeu o contorno. Não se sabe onde fica a rua e começa o pátio. As paredes das casas se abrem feito feridas. Escancaram um resto de vida que sobra pendurado num quadro daquilo que deveria ser uma sala. Uma estatueta de um santo se mistura ao prosaico das sobras cobertas pela lama. Ainda é possível ouvir os gritos. Os olhos se fecham e os ouvidos escutam o lamento de vivos e mortos. Os cachorros ladram assustados. Ao mesmo tempo há um silêncio estranho que atravessa as ruas. Difícil de explicar. Um silêncio dolorido, contido, misturado a incredulidade do que os olhos veem. O barulho dos passos de quem percorre as ruas deflagra a medida de como somos pequenos diante da natureza.
O sol finalmente chega. As pessoas vão aparecendo. Sem alarido, varrem. Varrem a lama, a água empossada, os galhos, as dores. Varrem de cabeças baixas. Varrem como se isso fosse a única coisa possível para sobreviver ao desespero que dilacera o peito. Não dá para contabilizar as perdas. É ainda muito cedo para isso. Há coisas que jamais serão recuperadas. Há pessoas, amores, futuros que desapareceram de modo tão assustador que não há palavras o suficiente para descrever o que houve.
Pisar nestas cidades afogadas pelo rio é afogar-se um pouco também. Não é possível que fiquemos indiferentes a tragédia que inundou nossos dias. A solidariedade demonstrada desde as primeiras horas dá uma ponta de esperança. Afinal, talvez sejamos pessoas boas, só nos esquecemos disso às vezes. E, há muito para ser feito, muito, muito mesmo.
Todo o dia o mundo começa, como todo dia ele acaba. É impressionante quando nos damos conta de que o início do mundo e o fim do mundo são uma única e mesma coisa. A certeza de que estamos vivos e é hora de trabalharmos juntos vem dos pássaros, que indiferentes a tragédia, cantavam e sobrevoavam Muçum anunciando o início de um novo dia.