Migrou dentro da própria casa. Abandonou a sala e se refugiou na área de serviço. Carregou para lá um fogão à lenha, panelas, uma mesa para apenas uma pessoa e uma cadeira. Depois de uns dias ali percebeu que precisava de mais objetos. Assim, arrumou espaço para um abajur, uma poltrona, alguns livros. Percebeu que precisava de um pouco de beleza. Então pintou a porta de azul e pendurou logo na entrada uma mandala colorida. Na parede, um quadro de flores divide espaço com uma foto pequena, enfiada entre o vidro e a moldura, do amor que se foi.
A observo e penso que há feridas das quais jamais nos curaremos. Os dias passarão, os anos, mas a ausência jamais será preenchida. Todos, de alguma forma, já buscamos um modo de retornar à vida em meio aos escombros.
Um pouco antes de partir, meu pai dizia que via ratos cruzarem por sobre os móveis. Me chamava e pedia para mata-los. Falava fazendo sinais com as mãos como se usasse um idioma por mim desconhecido.
A casa deixou de ser a mesma. Há um silêncio que verte das paredes durante muitas horas do dia. Menos nos fundos, onde o sol de inverno aquece o espaço e seca as roupas e a tristeza. Arrasto uma cadeira da cozinha e me sento junto dela. É estranho, mas parece haver dois mundos: o mundo em si e o que resta da vida. Ficamos em silêncio, tomando um chimarrão, recolhidas em nossas margens. Em silêncio também, porque a alegria ao imaginar que quando tudo termina, jamais saberemos o que significa terminar de fato, nos consola. E pensar na alegria é agarrar-se a uma coisa boa de infância, como quando depois de terminar os temas da escola subia no balanço feito de pneu de carro e de tão alto que ia, os pés tocavam no azul do céu. Quase podia ser um passarinho, pensava, mas nascemos sem asas.
Se a casa já não é mais a mesma nem nós mais somos. Quando alguém vai embora acontece uma coisa estranha. A ausência do lado de fora faz com que passemos a vê-la pelo lado de dentro. Como se a imagem dela grudasse bem atrás de nossos olhos. E ficamos tentando ver e ver e lembrar e lembrar. Na verdade, temos medo de esquecer. Esquecer do modo como falava, ria, lavava a louça, caminhava. Esquecer das conversas, da presença pela casa, dos gostos, das histórias que contava. Esquecer de quem se foi é um pouco esquecer-se de si também.
Quando o outro parte, parte de nós segue junto. Somos abandonados duplamente. O que fica, partido, tem de haver-se com os vazios. O que sobra é o choro. E chorar é um jeito de sair de si mesmo. É dar-se conta de não mais poder ser um em si mesmo. Viramos estrangeiros. Migramos dentro da própria casa na busca por um território livre de lembranças. Embora a imagem dos ratos sobre os móveis destrave a porta da memória quando menos se espera.