Foi numa manhã indecisa que a dor atravessou a sala e sentou-se na poltrona. De fala em pausas, chorou. Contou-me de quando era pequena, do silêncio dos girassóis em dia de chuva e da dificuldade em ter alguém por companhia. Ninguém gosta da dor. Ninguém gosta de sentir dor. Mas ela existe e chega assim, sem que ninguém se dê conta. Chega devagar e instala-se. Disse-me que havia percorrido quilômetros até chegar aqui. Havia atravessado salas de jantares barulhentos, quartos vazios, vasos sem flores, ruas em dia de passeata. Contou-me que andara nas costas daquele senhor de casaco largo, nas lentes da mulher que tenta ler algo dentro do ônibus, nas pupilas da criança que observa pela janela o dia correr atrás de uma bola, no choro silencioso da mãe, na tinta da caneta que tinge as páginas de um diário, no lenço preto que esconde a falta de cabelos. A ouvi, apenas isso. Ouvi o eco de um riso que há tempos se perdeu. Ouvi os inúmeros passos dados em busca de cura. Ouvi o medo chorar de medo da morte. Ouvi um coração batendo como batem as asas do pássaro que se joga em direção ao vazio azul do céu. Ouvi a tristeza de estar só e o desejo de ser abraçada.
Um dia, precisamos abrir mão da esperança de que nosso passado pudesse ter sido diferente. De que nossos pais pudessem ter agido conosco de outro modo. De que eles pudessem nos amar do jeito que esperávamos ser amados. De que nossa escolha amorosa realmente fosse a certa. Precisamos desistir de querer mudar o que ficou para trás. Desistir de lutar contra a memória das coisas que fizemos ou deixamos de fazer. Desistir das lembranças que machucam e não deixam a alma cicatrizar. Desistir de querer o impossível. A vida anda, mesmo que não percebamos. Nos carrega para o dia seguinte. Nos empurra para um passo a mais. E de repente, lá se foram 30, 40, 80 anos.
Um dia, nos damos conta de que precisamos nos perdoar. Nos perdoar de ter sentido raiva quando alguém querido morreu. Nos perdoar por esperarmos uma vida inteira por um eu te amo que nunca chegou. Nos perdoar de nunca ter dito eu te amo e agora ser tarde demais. Nos perdoar pela criança que fomos, pelo adolescente que fomos, pelo adulto que nos tornamos. Nos perdoar de ter mentido, traído, fugido, brigado. Nos perdoar de ter batido no filho quando ele chorava e não sabíamos o que fazer. Nos perdoar de não ter beijado uma vez mais antes da partida. Nos perdoar de não termos nos cuidado e hoje nosso corpo adoeceu. Nos perdoar por nunca termos realizado alguns sonhos e que agora ficaram distantes demais.
Às vezes achamos que não sentimos mais culpas, que esquecemos as situações e pessoas que nos feriram. Então uma leve batida na porta anuncia a chegada da dor. Ela chega travestida de tristeza, melancolia, cansaço, angústia, solidão. Não a reconhecemos de imediato, porque perdemos a conexão conosco mesmos.
Nessas horas lembro de Mário Quintana “não importa que a tenham demolido. A gente continua morando na velha casa em que nascemos”. E um dia, a casa cai. E é preciso perdoar-se disso também.