Do encontro, da conversa nunca encerrada, do julgamento da amiga, da palavra afiada do conhecido, da língua torta da irmã, do não adeus do pai indignado, da forma como a mãe critica, do medo de tentar de novo e não conseguir outra vez, da memória do dia da briga, da falta de coragem de ir embora, de finalmente explodir, das sombras que são nossas sombras, do cheiro da pólvora, da carteira de cigarros sobre a cômoda, do perfume, do fogo dos olhos, da amizade deslocada, da alergia dos gatos, das pessoas invasivas, da discussão junto à porta, do lixo não recolhido, das notícias sobre morte, do corpo envelhecido, de ficar sozinha, do mundo sem voz, da gravidade ser uma mentira, dos cacos de vidro espalhados pela cozinha, da loucura, da doença que nos consome contra nossa vontade, do tempo que se desintegra, de não conseguirmos voltar a trás, de quebrar o fêmur, de morrer antes do tempo, de sorrir quando se queria estar chorando, do relâmpago que ilumina continentes passados, dos vazios de domingo, dos terrenos baldios e cobertos de mato, da ansiedade do não saber, da tarde que nos invade feito uma locomotiva desgovernada, dos maxilares cerrados durante a noite, dos que deixamos morrer e partir, da água vertiginosamente parada das poças, dos legumes misturados ao sangue sobre a tábua de cortar, das nossas costas diante dos olhos dos outros, de nunca entender suficientemente, de desistir, de largar tudo e ir embora, de ter de se explicar novamente, dos vizinhos que fervem, do alarido doente dos sempre felizes, de gritar pela janela enquanto o pássaro cruza o céu, da pouca luz ao anoitecer, do alarme que dispara por dentro, de perder a pressa, das brigas à mesa do jantar, dos excessos entre os amantes, de acordar tarde, dos ruídos da casa, da mala (des)feita, do que há debaixo dos móveis, dos passos na rua, da buzina à meia noite, dos que descansam em paz, da hipocrisia, das gaiolas, do que apodrece, do cheiro ruim, da escuridão, das gavetas dos armários nunca mexidas, de avinagrar com o tempo, do passado sempre presente, da roupa surrada da pessoa amada, de ouvir uma verdade dolorida, de ter mudar quando não se quer mudar, do paletó que não serve mais, das coisas que se perde em vida, da criança que fomos, da palavra certeira e rarefeita, de meado dos anos 1980, de lavar a roupa suja durante a refeição, dos fios brancos do cabelo, da barba e dos pentelhos, de estar sempre armada, de aceitar que o que passou, passou, de suportar que há lembranças que nunca irão se apagar, de abraçar a água e afogar-se em meio a tristeza, de parar de ouvir o chamado da vida, de ter um câncer, de voltar a fumar, de descobrir que somos flores de um jardim que ninguém visita. Mas que também não abre os portões.
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Nossos excessos
Perdoar-se
Lembrete amoroso