Há anos não acontecia do interfone de casa tocar por alguém pedindo comida. Lembro disso acontecer quando era criança. Lembro dos meus pais sempre comprando a mais para poder dar a quem batesse em nossa porta rasgando a realidade cotidiana e nos levando para a beira do abismo da vida dos que não têm o que pôr no prato. Agora isso voltou a acontecer. Toca o interfone, olho pela janela e lá estão dois garotos, um mais velho, de uns 12 anos e outro pequeno, de uns cinco ou seis. “Oi tia, a senhora tem algo para nos dar hoje, pode ser qualquer coisa”, dispara o mais velho. Fico com a expressão qualquer coisa na cabeça. Qualquer coisa. A vida se resume a dois tipos de pessoas. Há aqueles para quem a fome é apenas uma palavra e aqueles para quem fome é sinal de morte. Não há espaço para filosofar sobre esses todos que não têm o que comer. Assim como o discurso não resolve o problema, a reza também não. O “qualquer coisa” dos meninos revela o desespero de quem pede mais que feijão e arroz.
A primeira vez que li sobre a fome no Brasil foi na adolescência. Li uma reportagem de Gilberto Dimenstein. Ele chamava o leitor para pensar sobre o assunto, dizendo: fome não é o que você sente quando chega em casa depois de um dia de trabalho, fome é outra coisa. Mas outra coisa não é qualquer coisa. Qualquer coisa é desejo esvaziado. Qualquer coisa serve, pois já se está tão sem coisa alguma, tão desnudo diante da vida, tão sem expectativa que qualquer coisa é melhor que nada.
Carolina Maria de Jesus (1914-1977), escritora brasileira dizia que a “fome é amarela”. Não há letras que consigam escrever a palavra fome. Fome não se descreve. Não é possível reduzir a fome. Ela é irredutível. Encaro os olhos dos meninos que quase se escondem atrás da máscara e entendo sem letras o que sinto, mas me falta a experiência. Nunca passei fome na vida. De nenhum tipo.
Que país é esse, que sociedade é essa que se apossa do corpo e da vida das pessoas? Não existimos onde há fome. Nenhum de nós. Nem os meninos que pedem comida, nem eu que aqui escrevo e nem tu que me lê. Só há o vazio. Vazio humano e a constatação de que fracassamos, todos nós, fracassamos. Mas ainda resta a solidariedade. Sempre damos um jeito, de modo muito miúdo, mas fazemos. Alguns de nós fazem. Alguns assim, anonimamente, alguns no coletivo. Fico pensando e, como humana que sou, fico com raiva. Onde estão as igrejas de todas as crenças? Que Deus é esse que não se comove diante da fome de um filho? Se fomos feitos a imagem e semelhança dele, e se ele é tão bom, algo saiu muito errado. E os políticos? Tenho muita vergonha dessa categoria. Poucos se salvam, a maioria oscila entre os egoístas e os imbecis.
Mas os que têm fome são invisíveis, são a beira do mundo. Lembro de Eliane Brum, também escrevo porque a vida me dói, e é na certeza de quem me lê e sente o mesmo, que alimento minha fome de mundo possível.