2020 foi um ano estranho, acho que (quase) todos concordamos. Tivemos de aprender a vivê-lo a seu modo. Mas também foi um ano de reencontro consigo mesmo, para o bem e para o mal. Muitos de nós se depararam com seus velhos fantasmas, suas feridas de antigamente, dores sem data. Gosto muito de um filósofo chamado Martin Buber, que escreveu entre tantas coisas incríveis, o livro Eu e Tu. Buber sugere que quando encontramos com nosso próprio eu, quando conseguimos penetrar nossos recantos mais escuros, Deus aparece. Quando deixamos de ser o foco, aceitamos que somos imperfeitos e incompletos e que seremos assim por toda a vida, é como se abríssemos espaço para aquilo que se pode chamar, também, de espiritualidade ou mistério. E o Outro é sempre um mistério. O Outro do Outro e o Outro de nós mesmos. Essa busca por si, em algum momento, esbarra naquilo que pensamos ser a transcendência. Mas isso não significa resolver todos os problemas ou acabar com a angústia de viver. No entanto, pode significar que apesar de não compreendermos o mundo e as pessoas, ele ainda pode ser acolhido. Não somos tão diferentes do que temos do lado de fora. Podemos tentar agir diferente, sentir mais, refletir, ser ético, talvez menos ignorantes em determinadas questões, mas se fôssemos melhores não estaríamos aqui. Sejamos mais humildes, nosso dinheiro ou nosso conhecimento intelectual não nos salvam dos abismos que carregamos por dentro e que tanto nos assustam.
Semana que vem já é ano novo. O fim é também começo, dizia Winnicott, psicanalista inglês. O sonho do fim revela a origem. Entre a origem e o fim conseguimos entender como uma pessoa vive. Muitos de nós se debatem com pensamentos insistentes, insônia, ficam planejando, aferindo, analisando, julgando, tentando categorizar tudo em bom ou mau, tentando dar opinião sobre os fatos, dizendo que 2020 foi uma espécie de bênção ou uma catástrofe. Enquanto o que realmente importa é descobrir que não temos controle de nada. Por isso, talvez a palavra para 2021 seja fluidez.
Ser fluido não tem a ver com estar vazio ou cheio. Diz respeito a deixar passar. Vivemos num mundo que nos convenceu que mais é melhor. Acreditamos que temos o direito de viajar a qualquer hora, de beber e comer tudo o que pudermos, de fazer festa em meio à pandemia, de transar com todos e não nos responsabilizarmos pelos estragos da falta de afeto, não só no outro, mas com nós mesmos, que precisamos experimentar tudo. Desejamos uma vida ilimitada para sujeitos limitados. Não importa o quanto você fantasie ou trabalhe, você não terá tudo o que quer.
Ser fluido é ter coragem de ser quem se é diante de cada experiência. Somos cheios de agoras e é na brecha entre um e outro instante, quando nos abrimos para a beleza da vida em meio aos escombros que talvez Deus possa nos encontrar.