Gosto de andar descalça, assim como os pés de jasmim de poeta que crescem no jardim em frente. Soltos, donos do espaço, enraizados, mas disponíveis para o vento. Caminhar sem sapatos é um modo de relacionar-se com o mundo. É pelos pés que (re)conhecemos o caminho.
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Quando não sei qual sentido tomar, não faço cálculos, planos, nem traço metas, apenas consulto meus pés. Eles sabem a direção da fonte, de onde extrair água, em qual terreno se fixar, onde poderão florescer. Sabem também a hora de partir.
Gosto de pensar nos pés como a parte que mais sabe de mim, justamente por estar no ponto mais distante da cabeça. Enquanto a mente nos remete para o mundo dos pensamentos, os pés tocam a grama, sentem o calor do sol, a água do chuveiro que escorre pelo corpo, têm a liberdade de tirar as sandálias sob uma mesa de reuniões e respirar.
Pés são mais anárquicos. Não disfarçam a ansiedade, nem burlam a indecisão.
Eu gosto de observar os pés da pessoa amada. Eles falam do desejo de dançar, da saudade que desce do ônibus na rodoviária, da preguiça após o almoço. Há sempre uma verdade que escapa pelas extremidades.
Uma bênção.
É preciso perceber as delícias que existem nessas banalidades cotidianas, muito mais do que apenas achar que os pés aproximam ou afastam.
Nossos pés guardam a memória da infância. Os meus auxiliavam na subida da árvore, eram freios no carrinho de lomba, afastavam a areia da praia ajudando a cavar buracos. Foram meus pés que me puseram de pé depois de inúmeras quedas.
Há uma força que brota deles tão intensa quanto a do jasmim de poeta, que rasga o limite da terra para deixar-se perfumar de noite.
Os pés guardam segredos. São cúmplices de beijos roubados às escondidas na adolescência; ajudam a abrir espaço na cama para a hora do sexo; nos levam ao encontro do futuro e nos ajudam a arrumar a mala quando a casa vazia já não suporta mais ser pisada.
Nossos pés carregam o peso de um passado, o gosto particular da despedida, aguardam a (re)volta, estalam as tábuas do chão e inventam profecias. São nossos pés que nos ensinam a correr e carrego neles meus pulmões.
Há dias, como hoje, em que acordo com pés loucos para gritar, subir telhados e penetrar no misterioso tecido que é a vida. Mas a loucura está somente neles, que me avisam de que é hora de florescer, outra vez.