As lembranças das chamas e da dificuldade de respiração são cada vez mais claras para Jeferson Ricardo da Silveira, de 33 anos, pouco mais de um ano após ter sobrevivido ao incêndio que matou 11 pessoas no Centro de Tratamento e Apoio a Dependentes Químicos (Cetrat), em Carazinho, no norte do Estado, em junho de 2022.
As sequelas e algumas barreiras na recuperação tornam a noite daquele 23 de junho ainda muito viva na mente do homem, que atualmente mora em Santa Cruz do Sul, distantes 216 quilômetros de Carazinho. No incêndio, Jeferson inalou fumaça, sofreu queimadura interna e infecção no pulmão esquerdo. Ele passou por uma traqueostomia no Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, para onde foi transferido ainda no dia do incêndio e ficou pouco mais de um mês no hospital.
Passados 383 dias do incêndio, Jeferson garante que ter sobrevivido é o que o motiva a ter uma nova vida, mesmo com as dificuldades, como algumas recaídas no uso de drogas neste período, além da falta de oportunidade de trabalho. Atualmente, ele vê nos pais e amigos a força para retomar a sua vida.
— Eu ainda sofro bastante por causa do incêndio, principalmente com sangramento e com a respiração. Foi tudo muito triste o que aconteceu, as vidas que foram perdidas. Hoje, eu tento seguir a minha vida, na batalha, com ajuda de Deus, mas não é fácil. Eu quero olhar para trás e ver que (o incêndio) significou uma virada de chave — afirma.
Com sonhos de conquistar uma casa própria, possuir um carro e ter uma família, Jeferson precisa dar o primeiro passo: conseguir um emprego. Segundo o sobrevivente, seu nome está muito "marcado" pela tragédia e por ter passagem pelo centro de tratamento.
— Hoje eu sinto muita dificuldade para conseguir um emprego. Estou tentando buscar as coisas, ter a minha vida. As pessoas fazem muito a ligação porque eu estava em uma casa terapêutica. Está bem difícil, porque eu era lembrado pela dependência e isso aumentou com o incêndio — declara Jeferson.
Era a segunda passagem de Jeferson pelo Cetrat. Antes de retornar, em maio de 2022, ele permaneceu no local por oito meses, em 2019.
Dor e saudade para os familiares
De Não-Me-Toque, a família de Gilberto Soares dos Santos ainda vive o luto de ter perdido um ente querido no incêndio. A sobrinha da vítima, Daiane Miller, relata que é difícil falar do tio sem sentir dor e se emocionar.
— Ele era a alegria da família. Alegrava a todos, era brincalhão, fazia nós dar risada. Nós podíamos estar triste, ele chegava e alegrava o ambiente. Ele tinha os erros dele, é claro, mas nunca prejudicou ninguém. Era muito prestativo, estava sempre disposto a ajudar. Todo mundo gostava dele. Só tinha esse problema da droga — lembra.
Gilberto havia voltado para o Cetrat após um período de abandono do tratamento. Era a segunda passagem dele na casa. Na primeira, ficou seis meses.
— Ele ficou internado seis meses e saiu porque não queria mais. Deu um tempo e ele acabou voltando, e na sequência teve o incêndio. É muito triste, porque ele faz muita falta para nós. Esses tempos, eu e minha irmã comentamos, lembrando das coisas que ele dizia e começamos a rir. E pensamos que só conseguíamos rir porque ele fazia nós dar risada com o jeito dele — completa Daiane.
GZH Passo Fundo tentou contato com os responsáveis pelo Cetrat de Carazinho por três dias, mas não conseguiu retorno até a publicação desta reportagem.
Em contato com o prefeito de Carazinho, Milton Schmitz, GZH foi informado de que o Cetrat não funciona atualmente. A organização filantrópica começou suas atividades em 2002 no município. O prefeito lamentou que o trabalho de décadas terminou assim.
— Não foi reativado em outro espaço. É triste, porque foi feito um trabalho maravilhoso por muitos anos e aconteceu essa tragédia. Agora, eles sofrem a consequência dessa situação por conta de uma tragédia dessas — declara.
Investigação
O inquérito policial sobre o caso foi concluído em janeiro de 2023, seis meses após o incêndio. A Polícia Civil não fez indiciamentos e não apontou a responsabilidade pela tragédia. De acordo com a investigação, através dos laudos do Instituto-Geral de Perícias (IGP) foi concluído que o início das chamas se deu pela "ação de corpo ignescente sobre material combustível presente nos dormitórios à direita e posterior, onde se deu o foco inicial do incêndio". A perícia descartou pane elétrica.
O documento explica que corpo ignescente significa algo capaz de iniciar chama, principalmente através de forma térmica, como fósforo, isqueiro, vela ou cigarro. Ainda, segundo a conclusão, o foco do incêndio ocorreu no acesso aos dormitórios, o que contribuiu para que as vítimas não conseguissem sair do local por causa das chamas, já que este era o único caminho para saída. As janelas dos dormitórios eram do tipo basculante, o que também dificultou a fuga das vítimas, segundo a Polícia Civil.
De acordo com a delegada responsável, Rita Felber De Carli, o inquérito foi concluído sem indiciamento em razão do fogo ter iniciado dentro do local. Ela aponta que, mesmo que o incêndio pudesse ter sido culposo, não haveriam respostas, já que as vítimas estavam dentro e morreram no local.
— Concluímos sem indiciamento basicamente em função da prova material e das perícias. Foi um apanhado de provas, com mais de uma perícia e levantamento do local, para não deixar dúvida. No fim, concluímos sem indiciamento porque efetivamente o incêndio começou de dentro do local. Foi algo de dentro que provocou o incêndio, e não de fora para dentro. Mesmo que tenha sido culposamente, teria sido provocado por alguém que estava dentro e que morreu junto — pontua.
O inquérito também apontou que o Cetrat estava com as licenças e autorizações para funcionamento em dia.
O caso
Um incêndio atingiu o Cetrat na noite de 23 de junho de 2022 e deixou 11 mortos e quatro feridos. As chamas destruíram todo o alojamento onde as vítimas pernoitavam.
Dos 15 internos que estavam no local, quatro conseguiram sair do prédio pelas janelas, do modelo basculante, após quebrá-las e entortá-las. Três deles ficaram feridos e precisaram de atendimento médico. Os demais não conseguiram sair do local e acabaram morrendo, já que havia uma única porta de entrada e saída, local onde havia a maior concentração de chamas.
As vítimas
- Avelino Timm (de Campos Borges)
- Adair José Langaro Nascimento (de Vila Lângaro)
- César Dutra de Andrade (de Espumoso)
- Luciano Serafim Lemos (de Carazinho)
- Gilberto Soares dos Santos (de Não-Me-Toque)
- Luiz Eduardo Ribeiro (de Santa Cruz)
- Oscar Duranti (de Constantina)
- Deive da Silva (de Santa Cruz)
- Sebastião dos Santos (de Alto Alegre)
- Idemar dos Reis (de Carazinho)
- Gilberto Almeida de Oliveira, monitor da clínica