As mortes de Anna Pilar Cabreira, de sete anos, em Novo Hamburgo, e de Kerollyn Souza Ferreira, de nove, em Guaíba, são uma triste ilustração do quadro preocupante da violência contra crianças no Brasil. Mesmo que os dois casos ainda necessitem do devido esclarecimento, as informações até agora disponíveis indicam, em diferentes contextos, o envolvimento das mães. São recorrentes, no Estado e no país, episódios do gênero com desfecho trágico pelas mãos de familiares próximos.
Na raiz do problema está a violência doméstica, que em regra se estende ao longo do tempo, com negligência e agressões
A violência e os maus-tratos contra crianças não devem ser banalizados. É dever de quem testemunha ou toma conhecimento de agressões de qualquer ordem denunciar aos órgãos competentes. A partir daí, a rede de apoio deve estar atenta e agir para solucionar o problema e evitar o pior, o que nem sempre ocorre, como parece ter sido a situação em Guaíba, diante do amplo conhecimento do conselho tutelar do município da situação de abandono e das brutalidades sofridas por Kerollyn.
Um relatório divulgado na terça-feira pelo Unicef, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, traz dados inquietantes sobre crimes letais contra crianças e adolescentes no país por indicarem tendência de alta. Entre meninos e meninas de zero a 14 anos, os casos subiram de 381 em 2021 para 435 em 2022 e 456 no ano passado. Em dois anos, a alta foi de 20%. No caso das crianças de até quatro anos, mais da metade dos crimes é cometida na residência onde vivem e em três quartos dos casos os autores são conhecidos das vítimas. No recorte de cinco a nove anos, em dois terços há o envolvimento de pessoas próximas e, da mesma forma, a maior parte das mortes ocorre dentro de casa.
Na raiz do problema está a violência doméstica, que em regra se estende ao longo do tempo, com negligência e agressões físicas, psicológicas e sexuais. Deve-se compreender melhor este fenômeno para enfrentá-lo. De forma mais urgente, é preciso alertar para a não omissão tanto de quem sabe da violência cometida quanto dos órgão que, uma vez alertados, devem intervir de forma rápida. O roteiro das providência é conhecido, a partir do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência, uma legislação de 2017 regulamentada no ano seguinte e que deu origem ao Pacto da Escuta Protegida. Ao que parece, nem sempre é observado à risca.
Neste contexto, merecem especial olhar os conselhos tutelares, órgãos encarregados de zelar pelos direitos das crianças e adolescentes e protegê-los de riscos e vulnerabilidades. Seus membros são eleitos a cada quatro anos em todos os municípios, e, no processo de 2023, as forças políticas que polarizam o país e correntes religiosas se mobilizaram para também influenciar as escolhas. O único viés dos conselheiros tem de ser a defesa firme dos ditames do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Tampouco podem ser negligentes diante de sinais de abuso, assim como devem ser diligentes os demais integrantes da rede de proteção, como o Ministério Público, o Judiciário, a Defensoria Pública e a Polícia Civil. Ao mesmo tempo que se aguarda justiça por Anna e Kerollyn, é obrigação advertir sobre a importância de seguir os protocolos para evitar novas tragédias.