Qualquer análise sobre o deplorável episódio de trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves deve partir do pressuposto de que as únicas vítimas são os mais de 200 resgatados. Foram eles os explorados e submetidos a maus-tratos, condições insalubres, violência física e ameaças, algo incompatível com a dignidade humana.
Não há sequer como relativizar o caráter abjeto do trabalho análogo à escravidão
Cabe às autoridades encarregadas pela análise do caso nas esferas trabalhistas e criminais uma investigação profunda e detalhada para chegar às devidas responsabilizações, com a individualização das condutas. É preciso saber quem agiu fora da lei por má-fé e ganância, como o caso do agenciador de mão de obra para a safra da uva, e quem se omitiu ou foi negligente, deliberadamente ou de forma desavisada, como os contratantes. Deve-se, também, esclarecer a extensão das práticas flagradas. Ou seja, se foi verdadeiramente um fato isolado ou se existem ou ocorreram situações degradantes semelhantes.
A partir do acontecido, poder público, entidades empresariais e organizações ligadas à vitivinicultura de Bento Gonçalves divulgaram, na segunda-feira à noite, uma nota em que reconhecem a gravidade do caso e enfatizam uma mobilização voltada a não permitir que circunstâncias do gênero se repitam. Qualquer generalização, o que neste caso significaria responsabilizar todo o setor, o município ou a região, é sempre injusta. Mas, a partir de agora, é dever de toda a comunidade se engajar para nunca mais permitir algo minimamente parecido.
A promessa é aumentar a fiscalização de alojamentos, da alimentação e das condições em que as tarefas, especialmente de safristas, são realizadas, além de partir para um esforço de conscientização da cadeia e a constituição de uma unidade para atender os trabalhadores, orientar e receber denúncias, assegurando a preservação de seus direitos laborais e de cidadãos. Espera-se que essas ações sejam implementadas e não arrefeçam com o passar do tempo. A melhor forma de enfrentar esse problema – e a lógica péssima repercussão – é admiti-lo, sem tergiversação, tomá-lo como lição, adotar medidas preventivas e comunicá-las de forma clara e enfática.
Bento Gonçalves, terra de imigrantes que venceram toda sorte de adversidades pela força do trabalho, é o município que simboliza a pujança do setor vitivinícola do Rio Grande do Sul e a qualidade cada vez mais reconhecida dos vinhos, espumantes e sucos produzidos no Estado. Também se tornou o grande centro do enoturismo no país. São atividades que asseguraram, ao longo das décadas, desenvolvimento econômico e tornaram a região motivo de orgulho para os gaúchos. A opinião pública e os consumidores, no entanto, estão cada vez mais atentos aos princípios ESG, sigla em inglês que diz respeito à observância das melhores práticas ambientais, de governança e sociais em empresas e instituições. Relações trabalhistas sadias e atenção aos direitos humanos estão inseridas no significado da letra S. Adotá-las, porém, muito mais do que mercadológica, deve ser uma questão moral.
Não há como negar que o episódio traz danos reputacionais não só às vinícolas, mas ao setor e ao município. Também por induzir a generalizações indevidas. Mas, da mesma forma, não há sequer como relativizar o caráter abjeto do trabalho análogo à escravidão. O caso, obviamente, também causa repulsa à esmagadora maioria da sociedade local, que tem agora a tarefa de demonstrar no dia a dia que essa prática não mais será tolerada ou negligenciada. É o melhor caminho para superar esse lastimável acontecimento.