O país que o presidente Jair Bolsonaro apresentou na abertura da assembleia geral das Nações Unidas é aquele em que os brasileiros gostariam de morar. Nele, a floresta amazônica só queima um tanto nas bordas, os incêndios no Pantanal são iguais aos da Califórnia, o chefe da nação tem "tolerância zero" com crimes ambientais, os investimentos estrangeiros aumentam significativamente graças ao progresso pulsante e o "tratamento precoce" contra o coronavírus evitou uma tragédia. O confronto com os fatos, no entanto, escancara que esse cenário róseo inexiste. Esse não é o Brasil real sob Bolsonaro.
O confronto com os fatos escancara que o cenário róseo apresentado pelo presidente ao mundo inexiste
Na prática, os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais apontam para um crescimento de 27% nas queimadas na Amazônia no acumulado do ano até terça-feira na comparação com igual período de 2019, o presidente e seu ministro do Meio Ambiente são no mínimo lenientes com grileiros, garimpeiros ilegais e desmatadores, o fogo no Pantanal não tem origem em causas naturais ou descuidos, o capital estrangeiro foge em massa do Brasil, com saídas recordes de US$ 15,2 bilhões líquidos nos oito primeiros meses do ano e o uso da cloroquina no tratamento da covid-19, sem eficácia comprovada por estudos científicos, só é defendido por Bolsonaro e seus seguidores.
Se estivesse apenas desfilando uma sucessão de delírios, inverdades e fatos distorcidos, seria possível atribuir ao presidente mais uma tentativa, nem tão rara em políticos, de somente tentar exagerar para melhorar a sua péssima imagem no Exterior, que acaba contaminando a percepção sobre o Brasil no mundo. Mas, não satisfeito, foi além e ainda terceirizou suas responsabilidades e omitiu os verdadeiros culpados pelo desastre brasileiro. Seguro como se fosse a mais cristalina e incontestável verdade, disse a líderes e à comunidade internacional que são índios e caboclos que originam as queimadas ao colocar "fogo nos roçados". O mundo e os brasileiros não fanatizados sabem que as apurações sobre as queimadas apontam para desmatadores profissionais e uma parcela de fazendeiros irresponsáveis.
Ao atribuir a parcela da imprensa uma situação de pânico pela doença, Bolsonaro cometeu um duplo equívoco: além de a imprensa ter colaborado para um clima ordeiro e pacífico em relação aos efeitos da pandemia, ele perdeu mais uma chance de deixar de minimizar publicamente o novo coronavírus. Aos olhos da imprensa internacional, que age com a mesma responsabilidade da brasileira, Bolsonaro é um negacionista e, portanto, inapto para lidar com a dimensão da pandemia.
Pelo lado que pode ser julgado como positivo, ao menos não repetiu o grau de vexame de sua estreia na ONU, no ano passado, quando rompeu o tradicional pragmatismo da diplomacia brasileira para atacar países e ONGs. O tom defensivo e mais moderado e os apelos à paz internacional mostraram que, nesse aspecto, Bolsonaro atendeu a apelos para conter parte da beligerância contumaz. Outro ponto a ser motivo de alívio é que a fala de Bolsonaro foi ignorada pela imprensa mundial, o que, no caso de um presidente que quebra a louça a cada vez que entra na sala, é um conforto para a já estraçalhada imagem do país no Exterior.