Por Beatriz Araujo, secretária da Cultura RS
"O sertão é dentro da gente", escreveu Guimarães Rosa, mineiro de Cordisburgo. Internalizar o território, a cultura e as vivências é uma das capacidades da alma humana. Os criadores nos ajudam, ao revelar esse mundo de fora que, muitas vezes, não enxergamos a olho nu. "Por maior que tu sejas, Rio Grande, caberás sempre dentro de mim", cantou Paixão Côrtes em seu hino, sintetizando aquilo que sentimos por nossa terra tão querida.
O fronteiriço escritor bilíngue Aldyr Garcia Schlee se dedicou, durante toda vida, ao estudo do léxico de João Simões Lopes Neto, nos deixando em sua vasta obra literária a tradução da cultura pampeana sul-rio-grandense, consolidada, finalmente, no seu dicionário, o qual pode ser acessado em www.dicionariopampeano.com.br
Schlee afirma que as linhas divisórias separaram impérios, países, mas não foram empecilho ao surgimento de uma cultura comum
Para concretizar o dicionário, Schlee se debruçou sobre a obra de expoentes da literatura platina e descreveu milhares de verbetes recorrentes, buscando traduzir-se e traduzir-nos. O mundo do gaúcho teve suas características ligadas à sociedade que aqui se estabeleceu, seus modelos econômicos e culturais, sua rebeldia. E sempre os contrastes: as derrotas e as vitórias. Precisamos compreender este mundo em sua complexidade, incorporando diferenças e uma visão plural de nosso passado. Dar voz àqueles que ainda não foram ouvidos, como fez Simões Lopes Neto com o vaqueano Blau Nunes, Guimarães Rosa com seu Riobaldo e o próprio Schlee com seus personagens marginais, rejeitados da sorte.
Neste universo pampeano, Schlee afirma que as linhas divisórias separaram impérios, países, mas não foram empecilho ao surgimento de uma cultura comum, evidenciada nos modos de ser e fazer; na recriação linguística e rica diversificação léxica.
Valho-me de algumas das contribuições de Schlee, presentes em seu Dicionário da Cultura Pampeana Sul-Rio-Grandense. Palavras vivas no vocabulário de hoje, contrastes que nos definem. FARRAPO: trapo, andrajo, pedaço de pano cheio de fiapos ou farpas. Nome dado pelos imperiais legalistas a cada um dos insurretos republicanos, no Rio Grande do Sul, durante a chamada Revolução Farroupilha (de 1835). FARROUPILHA: denominação dada pelos imperiais aos insurgentes sul-rio-grandenses. FAÇANHA: proeza impressionante, ato de coragem, determinação que ultrapassa os limites habituais.
Em 2020, comemoramos os Festejos Farroupilhas com o tema Gaúchos sem Fronteiras. Apostamos nas tecnologias digitais como ferramentas de inclusão e integração. Celebramos as tradições de um Estado do tamanho de nossos sentimentos, que se expande na medida em que compartilhamos e dividimos nossa cultura. Muitos gaúchos estão distantes, talvez isolados, em diferentes partes do mundo. A história, a força de nossos mitos e da nossa memória compõem um patrimônio interior que nos leva a crer que o Rio Grande é dentro da gente.