É no mínimo inquietante a descoberta, tornada pública pela Controladoria-Geral da União (CGU), de que 680.564 agentes públicos receberam uma ou mais parcelas do auxílio emergencial do governo, de R$ 600. O valor da possível fraude aproxima-se da casa do bilhão, mais precisamente R$ 981.712.800, mas, apesar da dimensão da quantia, a preocupação deve ser estendida a mais duas hipóteses assustadoras: a fragilidade do sistema de concessão de auxílio e a existência de um formidável exército de agentes públicos (servidores ativos e inativos, pensionistas, detentores de cargos e mandatos) dispostos a obter benefícios do Estado aos quais não têm direito.
É preciso ressalvar que não necessariamente a totalidade dos agentes públicos relacionados se apropriou de verbas às quais não teria direito. A CGU observa ser possível que alguns dos nomes tenham sido incluídos automaticamente na concessão por constarem do cadastro único de programas sociais ou serem beneficiários do Bolsa Família. Outros, por equívoco, podem ter sido considerados agentes públicos quando não mais o são – o que seria mais uma falha de controle. Seja quais forem as condições, porém, trata-se de uma parcela pouco representativa do universo de servidores que se candidataram, e receberam, o auxílio sem que tivessem direito a tanto.
Além de procurar o ressarcimento, é obrigação das autoridades nacionais e estaduais não se conformarem com a simples devolução para que o episódio seja esquecido
A sangria é tão extensa, que o governo chegou a criar dois endereços eletrônicos, um para eventuais contestações e outro para que seja feita a devolução dos valores por quem os recebeu indevidamente. Apenas no Rio Grande do Sul, foram identificados nessa condição 4.365 agentes públicos estaduais e municipais, a partir do cruzamento de dados do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e do Ministério da Cidadania. Agora, além de procurar o ressarcimento, é obrigação das autoridades nacionais e estaduais não se conformarem com a simples devolução para que o episódio seja esquecido.
Uma vez confirmada a obtenção fraudulenta do benefício, é obrigação dos órgãos fiscalizadores tomar providências para que agentes pagos pelos contribuintes, sem capacidade de discernimento entre o público e o privado e destituídos dos princípios que devem nortear o comportamento ético, sejam devidamente penalizados. O Estado deve agir e deixar claro que a apropriação, por seus representantes, de um auxílio emergencial destinado à parcela mais vulnerável da sociedade não pode ser tratado apenas como um ato circunstancial e passageiro.
Ainda que a comprovação da fraude possa não ser suficiente para a demissão desses agentes, deve-se esperar que a atitude seja ao menos registrada nas suas fichas funcionais, a fim de desestimular futuras promoções ou ascensões de carreira. O Brasil chegou ao ápice da corrupção por uma cultura de leniência e de deixa pra lá que apenas recentemente começou a ser revertida, não sem grande resistência de estruturas viciadas no jeitinho de mover inadequadamente o ente público. Discursar contra a corrupção não basta. Para tirá-la do mapa de distorções brasileiras é preciso melhores sistemas de prevenção e punir exemplarmente aqueles que se desviam do caminho da probidade exigida e cada agente do Estado.