Por Miguel Ângelo Flach, professor e doutorando em Filosofia pela USP
O governo Bolsonaro cria instabilidades contra si que, sim, estão sendo retroalimentadas pela maior parte da mídia, mas que, a grosso modo, também o foram em governos anteriores. O problema é que a estratégia de retórica agressiva, ainda que se alegue de "contra-ataque", tem polarizado o Brasil a tal ponto que se você não é bolsonarista ou "de direita", é "de esquerda", lulista e tal. Identifiquemos os caracteres mais comuns aos lados que compõem este cenário, desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Para a reflexão proposta ao final, isto será o suficiente.
Enquanto a maioria da militância lulista se aproximava mais de organizações de base e sindicais de classe, alguns agentes públicos, escolhidos ao menos indiretamente por ela, flertavam mais com a elite econômica que depois os derrubou... Desde então, o lulista anseia pelo reconhecimento de que a deposição de Dilma resultou apenas de pilhagem midiática que encontrou eco no parlamento e no ativismo judicial que, segundo eles, também levou Lula para a prisão, em 2018, intencionalmente para não participar das eleições. Enquanto anseia, ao menos, por algo que para ele seria justiça histórica, o lulismo não está morto, mas a esquerda está dispersa e fragmentada. Desde a prisão de Lula e a derrota nas eleições, ela e o lulismo icônico não conseguem fazer-se ouvir no âmbito do debate público sobre problemas persistentes como o fraco crescimento econômico, o alto desemprego etc.. Então, tem se voltado à temas muito relevantes – como o aquecimento global, a proteção da Amazônia, o racismo, os gêneros e suas relações, os indígenas etc. –, mas, com poucos reflexos práticos na vida imediata e local da maioria das pessoas.
O silêncio do senso crítico sobre os impactos reais de quaisquer ideias pode ser um sintoma de alienação
Em Bolsonaro, a Esquerda encontrou a personificação de sua antítese e eis que temos o populismo de direita. Em geral, o bolsonarista percebe-se em meio a uma crise de valores que se distanciam mais e mais dos aspectos que ele considera mais importantes na ética cristã, mas, principalmente, quer reação – e exemplar, à sua maneira – contra a corrupção no Estado, as violências, a morosidade da justiça que ele anseia, assim como a defesa da família tradicional. Quer o bolsonarista que as leis sejam mais rigorosas, e isto é sim salutar, mas, se fala "bandido bom é bandido morto", acaba por defender, contraditoriamente, a violação que condena: transgredir o direito do outro que nos torna universalmente iguais a ele – a vida. Na esperança de que se consolide a superação da crise econômica, ele confia no discurso neoliberal de Paulo Guedes, mas, na maioria das vezes, não tem clareza se as consequências práticas de tal discurso beneficiarão mais o Brasil ou qual parte dele. Conservadores, sobre as novas gerações, consideram que se deve criticar menos, não se "vitimizar" e fazer mais, e que no passado formaram-se homens e mulheres fortes porque tiveram que superar mais adversidades. Nesta direção, o estereótipo militar em geral lhes acalma a insegurança com a ordem social que, julgam, precisa ser disciplinada.
Rótulos "istas" são inflamados em pregações para convertidos de ambos os lados. Mas, em algum momento, teremos que ir além do olhar maniqueísta de um em relação ao outro. Ofensas com misoginia, gestos "banana", homofobia, transfobia e racismo – que, aliás, são crimes –, revelam mais de quem profere do que do outro.
Pode indicar boa consciência política defender ideias "de direita", "de esquerda". Porém, o silêncio do senso crítico sobre os impactos reais de quaisquer ideias, se não é apenas preferência por observar mais tempo para rompê-lo, pode ser um sintoma de alienação, ou ainda, esconder interesses obscuros, no caso de instituições. Não há argumento econômico-político não ideológico e, para a qualificação do debate, quanto menos argumento de autoridade e mais autoridade ao argumento, melhor. Se o contexto se mostrar mais claramente como de guerra cultural, ela não poderá ser ignorada sem enfrentamento se valores humanitaristas forem alijados, mas, se se restringir a algo como um "nós" (governo) contra "eles" ("mídia"), ainda que involuntário, pode simplesmente ser um artifício de desvio da atenção para atos do Legislativo e do Executivo. A despeito do que afeta o Estado, a sociedade, a comunidade, a classe e ou subgrupo que nos inclui, sintamo-nos comprometidos mais é com a lucidez, o discernimento.