O repugnante episódio do agora ex-secretário de Cultura do governo Bolsonaro que utilizou expressões do ministro da Propaganda do nazismo teve desfecho relativamente rápido, mas guarda lições que deveriam se enraizar para ajudar a iluminar o presente e o futuro do país. A primeira e mais vistosa delas foi a extraordinária reação de toda a nação, sem distinção de credo, partidos, classes ou matizes ideológicos, que se levantou contra a sucessão de absurdos perpetrada pelo então secretário Roberto Alvim ao citar expressões de Joseph Goebbels ao som da ópera favorita de Adolf Hitler no vídeo de lançamento do Prêmio Nacional das Artes.
Onde fundamentalistas tentam se apropriar da arte e da cultura, numa espécie de purificação social, nasce o ovo da serpente do fascismo
Em poucas horas, tão logo se identificou a similaridade com o discurso e a estética triunfalista do nazismo, as vozes da indignação se levantaram em uníssono, a ponto de o presidente Jair Bolsonaro, que inicialmente titubeou em demitir um secretário ao qual elogiava publicamente, se ver compelido a se livrar da mancha que ameaçava contaminar todo o governo. A pronta e inequívoca demonstração de repúdio da sociedade é um exemplo de que o Brasil não aceita e não aceitará posicionamentos que reflitam ideologias genocidas que deveriam ser relembradas apenas de forma indignada para que nunca mais tenham qualquer influência sobre sociedades na Terra.
Outro aprendizado que deveria ser introjetado pelo presidente Bolsonaro diz respeito à escolha de seu núcleo mais próximo. A nomeação de fanáticos políticos e religiosos, em geral seguidores do filósofo Olavo de Carvalho, é uma bomba permanentemente prestes a explodir. Na administração de um país, a busca da harmonia e do respeito a visões divergentes também nas áreas de comportamento deveria ser um objetivo permanente de nação. Não é o que se vê em boa parte do entorno mais extremado do presidente, que infelizmente faz questão de estimular atitudes e falas intransigentes quando não excêntricas. O responsável direto por esse constante estado de tensão que desvia o foco das realizações do governo e drena preciosa energia do país e da estrutura governamental é o próprio presidente, com frequentes exigências de lealdade e afinidade absolutas a seu ideário mais primitivo.
O episódio revela também uma disfunção profunda na perspectiva do governo Bolsonaro sobre a arte e a cultura. A inspiração nazista do discurso de Alvim não se limitou a reproduzir manifestações de Goebbels. A visão do secretário de que o povo precisa ser salvo de uma “cultura doente” ecoa claramente, como bem identificou o escritor Arnaldo Bloch em artigo em o Globo, a noção nazista de “arte degenerada” a ser purificada.
Onde fundamentalistas tentam se apropriar da arte e da cultura, numa espécie de purificação social, nasce o ovo da serpente do fascismo. O ovo estava depositado à porta do Palácio do Planalto, mas em boa hora o país se levantou em um movimento arrebatador de defesa dos valores mais profundos da democracia e da dignidade humana. Essa é a derradeira, mas não menos importante lição deixada pela tormenta palaciana: os que pensam ser possível garrotear as liberdades no Brasil de hoje encontrarão uma frente unida e sólida contra aventuras e tentações liberticidas.