Por Roberto Rodolfo Georg Uebel, professor de Relações Internacionais da ESPM Porto Alegre
As manifestações na América do Sul levam ao questionamento da própria natureza do Estado, de governos e da sociedade no que diz respeito aos seus papéis no sistema internacional contemporâneo. Nenhuma dessas tormentas tem chamado tanto a atenção quanto o caos que vive a Bolívia. Esse Estado burocrático tem sido um ator estratégico do heartland sul-americano. As relações do ex-presidente Evo Morales, hoje asilado político no México, prezavam pelo multilateralismo pragmático, de Maduro a Bolsonaro.
Morales renunciou ao cargo, após uma sucessão de acontecimentos, produto de equívocos políticos, projetos pessoais de poder, pressões da oposição, insatisfação popular, contestações da ordem constitucional e um complexo cenário eleitoral.Denúncias de fraudes eleitorais, relatadas inclusive pelos fiscais da Organização dos Estados Americanos, culminaram naquilo que o filósofo Thomas Hobbes definiu como o estado natural: anomia social, anarquia política, renúncias coletivas, invasões a propriedades privadas, depredação de espaços públicos, violação de direitos humanos e violência do Estado policial.
A Bolívia trouxe à luz diversos Leviatãs políticos, como a autoproclamada presidente interina, Jeanine Chávez, mostrando a profunda polarização da natureza humana: pessoas amarradas em árvores, torturas em praça pública, destruição de símbolos nacionais, amalgamação da religião com o Estado e a contestação do próprio caráter plurinacional do país – principal bandeira de Morales –, com relatos de perseguição aos povos originários e comunidades tradicionais.
O resultado dos últimos dias, que alguns analistas definem como "golpe de Estado" e outros chamam de "transição democrática", aponta para uma grave crise institucional e moral. Não só na Bolívia, mas em toda a América do Sul. Entre as consequências, estão governos contestados, violência, levante das massas e, acima de tudo, incerteza quanto ao futuro político e social. Neste contexto de emergência coletiva, messianismos, intervencionismos militares e rupturas tentam substituir o elemento fundador dos Estados modernos: a democracia republicana.