O ritual começa a se tornar uma rotina em Brasília. Cedo da manhã, o presidente Jair Bolsonaro deixa o Palácio da Alvorada, para no portão e, diante dos repórteres que já aguardam sua entrevista matinal, solta o verbo contra algum alvo do dia. Na quarta-feira, foi a ex-presidente do Chile Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os direitos humanos. Mas também pode ser o presidente da França, a Noruega, a OAB, ONGs, a imprensa, veí-
culos e jornalistas e, de forma obcecada, qualquer um que desenhe uma candidatura presidencial para daqui a mais de três anos, a começar pelo governador de São Paulo, João Doria. Em outras ocasiões, Bolsonaro provoca ou ironiza produtores culturais, pesquisas que lhe são negativas, o favorito das eleições na Argentina e, via de regra, todos os que exibem alguma independência de pensamento e ação, seja o ministro Sergio Moro, a Polícia Federal ou o secretário da Receita.
A estratégia de Bolsonaro de polarizar cada vez mais o país desmonta sua promessa, na posse, de que pretendia governar para todos
É ilusório supor que a retórica presidencial seja fruto de um descontrole emocional. A tática do presidente é exatamente essa desde que se elegeu deputado: soltar frases que escandalizam pessoas, instituições e setores regidos por equilíbrio e sensatez. Desde que fez submergir a sobriedade do porta-voz oficial e, contra conselhos, assumiu as rédeas da artilharia matinal, Bolsonaro radicalizou o método de indignar moderados para atiçar as redes sociais e enraizar a polarização. No seu horizonte, os 12% de eleitores que, segundo o Datafolha, endossam todos os atos e declarações presidenciais, são o bastante para mobilizar uma massa capaz de levá-lo novamente a um segundo turno em 2022, preferencialmente contra o fantasma do PT, adversário favorito e esmaecido, em um cenário de divisão ao centro e suas derivações moderadas à esquerda e à direita.
O cerne da estratégia reside em cevar falsos inimigos em série e acenar com a proteção messiânica a um eleitorado assustado. O modelo é copiado de políticos como Donald Trump e a sempre citada ameaça islâmica e da imigração latino-americana. No Brasil, com a escassez de ameaças externas e internas, Bolsonaro as semeia artificialmente. Na contramão do que prega a diplomacia, acende crises com vizinhos e antigos parceiros europeus, além de fazer brotar um rastro de constrangimento em governantes estrangeiros que compartilham o mesmo hemisfério ideológico. No campo interno, elege inimigos diários e, em vez de procurar ampliar a base de apoio, permite ataques nas redes para desgastar até simpatizantes que não rezam pela mesma cartilha da lealdade cega.
A estratégia de Bolsonaro de polarizar cada vez mais o país desmonta sua promessa, na posse, de que pretendia governar para todos. Ao gerar e estimular as dissensões, faz troça de quem, com a melhor das intenções a favor da governabilidade, torce para que ele desça do palanque. Bolsonaro já disse que seguirá agindo como deputado federal sem trava na língua, o território de ataques grotescos que lhe é familiar e que o impulsionou ao Palácio do Planalto. O risco maior dessa toada de tensão constante é de que seu governo, com o Brasil junto, se transforme em foco permanente de incêndios com a gasolina espalhada pelo presidente e, assim, perca o foco naquilo que de fato poderia fazer diferença na vida dos brasileiros.