Por Patrícia Azevedo da Silveira, advogada, mestre e doutora em Direito
Corriam os anos 1980. As professoras lançaram a advertência: nada de perguntas sobre a vida familiar do novo colega que iria chegar em breve. Numa tarde, ele finalmente apareceu na Escola Anne Frank, em Porto Alegre. Ainda que seu olhar tivesse marcas de tristeza, esse menino com sotaque de fora tinha uma inteligência e uma maturidade bem acima da sua idade. Tímido, chegara com sua bola de couro. Era sua única companhia, até que eu cruzei o pátio da escola, apresentei-me e lhe perguntei como era São Paulo.
A bola criava a fronteira imaginária entre nossa curiosidade e as perguntas que não podíamos lhe fazer. A dor ensina a cada um a forma de se proteger. Aos poucos, a bola quicou menos. Ficamos amigos, mas nunca ousei lhe fazer as duas perguntas: por que te mudaste para cá? Teu pai morreu do quê?
Passadas mais de duas décadas, a resposta veio, agora, na ultrajante invenção do presidente Bolsonaro em torno do assassinato de Fernando Santa Cruz, pai do presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, nos tempos do governo da ditadura. Os próprios arquivos militares apontam que Fernando foi preso e morreu. Dias atrás, vi em uma revista a fotografia do meu colega de escola, ao lado da mãe, segurando a foto do pai e pedindo justiça a "um desaparecido político" e o reconheci imediatamente.
A dor ensina a cada um a forma de se proteger
Felipe Santa Cruz merece nosso respeito pela infância roubada, pela trágica perda do pai, e não apenas por bem representar os advogados no Brasil e defender a liberdade e a democracia.
Minha geração estudou a história do Brasil só até o governo Juscelino Kubitschek. Não poder perguntar ou ser informado é fruto de um país que se nega a si próprio. Diferentemente da Alemanha, da África do Sul ou da Argentina, que reconheceram publicamente o horror do próprio passado, é lamentável que nosso presidente da República insista em desrespeitar as provas e a memória dos fatos. A verdade não é algo que possa ser ocultado para sempre, nem pode ser aparada com tesoura num corte de cabelo.