O incêndio de um prédio ocupado no centro de São Paulo colocou na pauta a questão das necessidades habitacionais da população de baixa renda. Trata-se de uma tragédia anunciada: o problema acompanha o Brasil desde fins do século 19, quando o país aboliu a escravatura sem dizer qualquer palavra sobre em que local a população descendente dos escravos iria morar. São contemporâneas à abolição da escravatura, portanto, as primeiras favelas brasileiras. Juntando restos de materiais na rua, ex-escravos passaram a construir moradias precárias, em áreas desprovidas de habitabilidade e sob as quais tinham mera posse.
Bastaria que os municípios brasileiros cumprissem seu papel e monitorassem o cumprimento da função social das propriedades urbanas
Em 2018, mais de 85% dos brasileiros vivem em cidades, mas o problema da moradia de interesse social só se agravou. Milhões de famílias vivem de maneira "irregular", sem segurança da posse, sem acesso à infraestrutura, aos serviços públicos e convivendo com ameaças de despejo. É de se destacar que as pessoas não ocupam áreas de risco, ambientalmente frágeis ou prédios em ruínas por opção ou má-fé: o fazem em estado de necessidade, já que nem o mercado imobiliário nem o poder público oferecem alternativas de acesso regular a terra com preços compatíveis com a baixa renda das famílias.
A Constituição Federal contemplou o direito à moradia como um direito social e estabeleceu ser competência comum da União, dos Estados e dos municípios "promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico". É evidente a omissão do Estado em atender a tal comando legal, já que nenhum dos entes da federação desenvolve políticas adequadas para solucionar o problema. A ocupação de prédios abandonados por famílias sem teto é resultado desse indesculpável descaso. Culpabilizar as vítimas do não atendimento de um direito fundamental pela própria tragédia é desconhecer que as competências são irrenunciáveis e, portanto, geram responsabilidades.
Nesta conjuntura de emergência social urbana, é preciso retomar as políticas de regularização fundiária de áreas ocupadas para fins de moradia. Tal política deve envolver titulação, urbanização e garantia de participação popular. Ainda, é necessário desenvolver programas para prevenir a produção irregular de cidades através da oferta de lotes urbanizados e com preços compatíveis com a baixa renda. Finalmente, é preciso lembrar que, em 2015, a Fundação João Pinheiro (MG) estimou o déficit habitacional brasileiro em 6,355 milhões de domicílios, ao passo que a PNAD (IBGE) localizou 7,906 milhões de imóveis vagos no Brasil, 80,3% em áreas urbanas. O contraste do déficit habitacional versus domicílios vagos demonstra que bastaria que os municípios brasileiros cumprissem seu papel e monitorassem o cumprimento da função social das propriedades urbanas, combatendo a retenção especulativa, para que um número maior de imóveis estivesse disponível para fins de moradia nas grandes cidades.