* Doutor em Letras, Professor da Unipampa/Campus São Borja
Ao examinar as relações entre literatura e sociedade no Brasil da segunda metade do século 19, Roberto Schwarz, no ensaio As ideias fora do lugar, refletiu a respeito do que chamou "comédia ideológica" nacional. Para ele, havia uma disparidade entre a introdução das ideias do liberalismo europeu no país, como modelo de inspiração burguesa, e a sociedade violenta e escravista da época. Por óbvio, a escravidão impugnaria, de início, as condições de liberdade do trabalho, igualdade perante a lei e outros anseios considerados emancipatórios.
Vinculada à gravitação das ideias nesse movimento singular, a perspectiva do favor como elemento mediador da vida nacional é outra contribuição importante e atual do ensaio de Schwarz. O favor combinou-se às mais variadas atividades no país como a administração, a política e a vida urbana. Além disso, sua consequência direta é nada menos que a dependência da pessoa, a exceção à regra e, ao mesmo tempo, o disfarce do arbítrio e da violência.
Assim, se o Brasil do século 19 insistia na implantação de ideias incompatíveis com sua realidade, o país hoje faz movimento similar. O Brasil das ruas não se reconhece na imagem especular do Brasil oficial. A prática do favor e as relações insidiosas entre o público e o privado ainda vicejam e as ideias não estão apenas fora do lugar, como também não dialogam com as aspirações populares.
Com modelos e projetos distantes do cotidiano, o Brasil dos três poderes parece se eximir do contato mais próximo e democrático com a sociedade. Como consequência, polarizam-se embates, rotulam-se adversários e não se chega a lugar algum, ou melhor, chega-se à despolitização revestida de quase absoluta apatia. Mas, ao fim e ao cabo, percebemos que somos quase "desterrados na própria terra", como escreveu Sérgio Buarque de Holanda, ou seja, temos a impressão de que não pertencemos ao mesmo país da melancólica e infame galeria de inúmeros personagens da nossa classe política.