* Professor
A reintegração de posse que envolveu a ocupação Lanceiros Negros não é apenas um problema de invasão a um prédio público. O problema não se restringe apenas às pessoas que lá estavam, mas afeta a todos nós, seja por simpatia, admiração, solidariedade ou contrariedade. Independentemente de ideologia, o conjunto da sociedade precisa refletir e enfrentar problemas como este na sua essência e buscar de soluções.
Mal saiu a decisão judicial autorizando o uso da força e rapidamente pipocaram nas redes sociais posicionamentos pró e contra essa medida e todos nós tomamos um posicionamento. Infelizmente, estamos todos errados!
Pessoas identificadas com os movimentos sociais, autodeclaradas à esquerda defendem a ocupação. Será mesmo que defender a ocupação é um posicionamento ideologicamente à esquerda? Uma das bandeiras históricas da esquerda é a defesa de que cabe ao Estado prover meios para que todos os cidadãos tenham moradia digna, com acesso aos bens básicos como água, luz e saneamento básico. A ocupação garante isso ou será a defesa do "mal menor"? Afinal, melhor ter um teto em condições precárias do que não tê-lo.
Algumas pessoas defendem a reintegração pelo princípio da propriedade, independentemente da motivação e das necessidades dos ocupantes. Consideram que cabe a cada cidadão "fazer por si" dentro das regras de mercado para acessar as mercadorias e os serviços, inclusive à saúde, educação, moradia etc. Normalmente, estas pessoas costumam se autodeclarar e/ou serem identificadas com a direita. Contudo, a desocupação sem política de moradia significa lançar as pessoas que lá estão em uma marginalidade, o que redundará em outros problemas. É a troca de um problema social por outro. Os Lanceiros Negros se reorganizarão e buscarão, por outras vias, uma forma de sobreviver. Apoiar o simples despejo pode significar deixar de lado valores de humanidade e de fraternidade com impactos no desenvolvimento econômico e social.
O governo, que deveria mediar estas relações e os interesses em disputa na sociedade, esquece que compete ao Estado prover o acesso à moradia e a uma vida digna para todos os cidadãos, direitos garantidos pela CF88, e fixa-se na queda de braço pela posse do prédio como uma criança que quer um brinquedo e esperneia porque não aprendeu a ouvir e a negociar. Não apresenta soluções para as pessoas que estão na ocupação e nenhuma proposta de habitação.
O uso autorizado da Brigada Militar de surpresa e sem negociação para retirar os ocupantes à força do prédio agrava o problema da segurança pública. O artigo 144 da CF88 diz que é dever do Estado a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Será que o despejo forçado, jogando-as na rua sem nenhuma política de moradia, garante a incolumidade destas pessoas? Ou a segurança fica esquecida, em segundo plano, para a garantia da posse do prédio?
No meio de tudo isso, estamos todos nós, que defendem, participam ou são contrários às ocupações. Todos os que defendem o governo ou são contra ele, que defendem a BM ou não confiam na sua atuação. Enfim, estamos errados sem compreendermos que o principal problema não é a ocupação em si. A ocupação é um reflexo, um sintoma de outros problemas ainda mais graves.
Basta observar que no mesmo dia em que foi noticiado à autorização ao uso da força, os jornais estamparam notícias que representam sintomas deste mesmo problema: a diminuição das turmas nas escolas e a construção de três presídios no RS. Retratos de uma sociedade que não valoriza educação, acesso à moradia, emprego e saúde. Três notícias que expressam com clareza e nitidez uma sociedade desigual, sem justas oportunidades para seus cidadãos e que pouco tem feito para superar estes problemas. Uma sociedade em crise, que vive pela regra "farinha pouca, meu pirão primeiro". Regra esta que corrompe relações e gera um processo de destruição das próprias estruturas da sociedade independemente do posicionamento ideológico de cada um direita ou esquerda.
Não deveríamos defender nem a ocupação nem esta reintegração de posse. Deveríamos tentar compreender o que representa esta ocupação na nossa sociedade. A ocupação é composta por um conjunto de pessoas com trajetórias diferentes e que chegaram lá por diferentes vias. Pessoas que moravam embaixo da ponte, em favelas, que perderam ou que foram expulsas de suas casas. Pessoas que trabalham na informalidade, outras que não trabalham e há ainda alguns poucos com carteira de trabalho. Não dá para descartar a presença de pessoas envolvidas com o crime, com origens e histórias um tanto diversas. A ocupação não é um grupo homogêneo e rotulá-los é a pior escolha. Ocupar um prédio público é um brado à "Pátria Amada" para que seja "mãe gentil" com "os filhos deste solo"
Dizer que todos lá são vagabundos e querem vida fácil não contribui ao debate. Tratá-los como coitadinhos que merecem tudo pronto sem nada precisar fazer, também não contribuirá. É preciso que a sociedade encontre formas de inseri-los de maneira digna.
Porém, se não conseguirmos repensar nossas posições ideológicas, não conseguiremos superar estes problemas que se agravam a cada dia. Hoje foram os Lanceiros Negros, qual será a ocupação e o despejo à força de amanhã?