Uma das correntes mais significativas do cinema contemporâneo – e talvez a mais vitoriosa nos festivais – é aquela que, sob nomes como "cinema de fluxo", "cinema contemplativo" e "cinema poético", propõe um esvaziamento do espaço antes ocupado pela narrativa.
O cinema, desde que foi inventado no final do século 19, quase sempre recorre a estruturas que o teatro e a literatura já haviam criado: personagens, tramas, conflitos. Filmes geralmente contam histórias e são julgados – pelo público e pela crítica – pela qualidade cinematográfica dessas histórias. Será que esse tipo de filme está superado?
No próximo final de semana, o ciclo dedicado ao cinema do projeto Diálogos Contemporâneos, que acontece no Santander Cultural, propõe um debate sobre tendências estéticas no audiovisual, com as ilustres participações de Gustavo Spolidoro, Ismael Caneppele e Jaque Chala. De minha parte, vou propor a questão (que é também uma provocação): o esvaziamento da narrativa no cinema revela uma crise da ficção ou não passa de um modismo estéril? Não é uma pergunta fácil de responder.
Antes de chegarmos ao que está acontecendo nos filmes, temos que passar pelo conceito de "crise", que hoje é coisa bem diferente do que significava nos anos 1960, quando os cinemas novos colocaram as convenções de Hollywood "em crise". Agora as crises não são necessariamente rupturas, nem apontam para algo necessariamente "novo". Eu sempre gostei de histórias – na literatura, no teatro e no cinema –, mas reconheço inúmeras tentativas muito bem sucedidas nas três linguagens que fazem da narrativa um pano de fundo para algo mais importante.
Quando Joyce escreveu Ulisses, sua maior preocupação não era fazer o leitor "entender" e "emocionar-se" com as ações de Leopoldo Bloom, de resto bastante triviais. E o que sua esposa Molly está "fazendo" nas últimas 54 páginas do romance? Nada. Contudo, Joyce colocou alguma coisa importante no espaço vazio da história, e é esse recheio pouco usual que garantiu seu reconhecimento como um grande autor.
Proponho discutir não o vazio narrativo do cinema de fluxo/contemplativo/poético, e sim o que os cineastas colocam no lugar do vazio. Aí veremos quem obtém glória eterna, ou ao menos cinco minutos de fama.