Viajo à beira mar para visitar uma amiga que acaba de perder a filha de 13 anos. Laura se matou.
Ao contrário do que muitos entendem, dar um fim à própria existência não é "coisa de europeu". Se pensarmos que 75% dos suicídios de adolescentes acontecem em países de média e baixa renda, temos motivos para nos preocupar. Somos o 8º no ranking mundial. Minha amiga é professora da rede pública. O marido dela é policial. Hoje, são quase pobres.
Trabalhando na praia, falta-lhes muito. Têm salários parcelados, condições profissionais precárias e nenhuma perspectiva de melhora. A filha morta agora é uma presença estranha na casa. Fotografia na porta da geladeira, um quadro que ela pintou, o par de patins que a mãe pede que eu guarde...
Assistimos ao Carnaval pela televisão, enquanto, no Facebook, a timeline é invadida por vídeos dos foliões exigindo "Fora Temer". Em Salvador, Caetano, que cantou o hino nacional na posse da ministra Cármen Lúcia, também puxa o coro cobrando a saída imediata do traíra. Com a notícia da compra de votos para a eleição de Cunha como presidente da Câmara para que o impeachment fosse colocado na pauta, fica claro que sim, foi golpe, é golpe e será golpe enquanto o seu mandato persistir.
Na noite de terça-feira, já no fim do carnaval, o Jornal Nacional dedica quase dois minutos ao "Fora Temer", com destaque para a camiseta de uma foliã pedindo "Volta Dilma". É estranho quando o jornal que divulgou grampos ilegais da presidenta hoje destaca a tela inteira pedindo a sua volta. A Globo, como todos os veículos apoiadores do golpe, teve suas contas turbinadas com aumentos obscenos de verbas publicitárias oriundas do governo ilegítimo.
Minha amiga é professora de História, matéria que alunos do ensino público poderão optar em aprender, ou não. A vizinha, faxineira, passa com o marido para tomar chimarrão. Ele é pedreiro. Os dois temem a reforma da Previdência. Trabalhadores braçais, sabem que não terão forças para enfrentar meio século de lida. Todos têm motivos para duvidar desse Brasil que aí está. A suruba de Jucá. Alexandre, o advogado do Cunha, no STF. Moreira Franco, o Angorá na lista da Odebrecht e sogro de Rodrigo Maia, presidente da Câmara, ganhando o ministério que Lula, que não tem apelido na lista da Lava-Jato, não pôde assumir. O que seria um ministério de notáveis hoje é um ministério de bandidos.
Aos poucos, a narrativa de golpe se instaura na roda e no país. O pedreiro hoje percebe que foi passado para trás. Ele pergunta por que tiraram Dilma. Minha amiga diz que foi pelo fato de ela ser mulher. "A história é misógina e homofóbica." A vizinha discorda: "Tiraram porque era honesta".
Na porta da geladeira, os olhos de Laura, a menina que não está mais lá, olham os meus. Penso na desigualdade que mata. Na dor de ser quando se torna insuportável. Divido com a roda que o suicídio deveria ser tratado como saúde pública. A vizinha, visivelmente constrangida, não sabe o que dizer. Minha amiga lembra que a Finlândia teve uma redução de 30% de suicídios após a implementação de uma política de prevenção ao autoextermínio. Ela se apega aos números para não se afogar na dor.
Vou embora de ônibus. O sol, caindo atrás da serra, lembra que ainda moramos no céu. No banco ao lado, uma mãe dorme com a filha no colo. Antes de também dormir, penso, novamente, na dor de ser.
E tento não culpar o Estado pela morte de Laura.