Em Fahrenheit 451 (1953), Ray Bradbury imaginou um mundo em que a televisão levara à perda do hábito de leitura, culminando num Estado que suprimira o senso crítico. Livros eram queimados porque estimulavam o pensamento independente, e o título remete à temperatura em que papel incinera. Mas uma comunidade resistia, memorizando obras completas a partir de seus últimos exemplares impressos, transmitindo-as às gerações seguintes. Esses foras da lei arriscavam as vidas por entenderem que o mais precioso bem que a humanidade possui é a razão. O livro tornou-se um libelo contra a censura em regimes totalitários. Em uma democracia – pensávamos – isso jamais aconteceria.
Ao assumir a Casa Branca, a administração atual removeu do seu portal (open.whitehouse.gov) dados gerados por agências governamentais, antes acessáveis a pesquisadores do mundo inteiro. O site incluía dados sobre tudo, desde orçamentos até mudanças climáticas e questões LGBT. Agora, exibe a mensagem: "Volte logo para ver novos dados". Trata-se de uma quantidade inimaginável de informação, no estilo conhecido hoje como "Big Data", ou megadados. Tal volume requer programas especiais para sua análise, feita por cientistas especializados, que identifica padrões, tendências e realiza previsões. Dados públicos são usados para tudo, de GPS a previsão do tempo. O governo dos EUA gasta quase US$ 140 bilhões por ano em pesquisa científica e desenvolvimento. Para se preparar para futuros cortes, grupos de cientistas se organizaram através do Twitter e do Facebook.
Alarmados, cientistas criaram o movimento Datarefuge.org – que nos últimos três meses realizou 17 eventos em que centenas de voluntários desenvolveram abordagens para copiar e publicar dados. O grupo também monitora pesquisa que depende do financiamento do governo, porque há preocupação de que isso será descontinuado. O Ministério da Energia editou seu site quanto a efeitos negativos do uso de carvão. Dados quanto à auditoria em empresas e resultados de testes em animais foram seletivamente removidos de outras páginas. O Data.world é uma rede social para pessoas que colaboraram na organização de conjuntos de dados, e o site de programação GitHub permite que programadores colaborem para criar novas ferramentas de análise.
Existem várias maneiras de ativismo cívico, e esta é uma delas. Os cientistas pretendem marchar no dia 22 de abril, dia da Terra, contra o que vêm chamando de "Guerra contra a ciência". Aos que acham que ciência não deve ser politizada, digo que agora é tarde, porque não apenas nos EUA, mas no mundo inteiro, há um movimento político contra o exercício da razão. No Brasil, vemos constantemente exemplos do uso do descaso com o trabalho de cientistas para manipular a opinião pública. Como a fosfoetanolamina, que prometia curar o câncer, e da qual ninguém mais fala pois os testes mostraram o que toda a comunidade científica brasileira alertava. A recente remoção do diretor do Instituto Butantã, hoje o maior produtor de vacinas da América Latina, por motivos políticos. Quem imagina que a guerra contra a ciência não afeta a vida diária está muito enganado. Atinge a qualidade da água que você bebe, o ar que você respira, o emprego que seus filhos terão, suas contas da farmácia. Bradbury culpou a televisão, hoje culpamos a internet, ou Trump, ou Temer, ou Lula. Os cientistas lutarão para proteger os fatos. Mas é você que decide se abre mão da sua capacidade, e do seu direito, de pensar racionalmente.