Já ouviram o hit deste verão, Deu onda? Eu o conheci há pouco, na praia (onde mais?), embora já tivesse notícias do refrão infame, que na versão censurada da rádio diz “O pai te ama”. A música é uma declaração de amor adolescente bastante pueril, com a diferença de que a versão hard tem palavreado sexual explícito – o que não deixa de ser pueril, como criança falando palavrão. Um de seus atrativos parece ser a transgressão: a risadinha cúmplice de quem ouve a versão desnatada sabendo que se refere à outra.
Por alguma razão, lembrei-me de Cálice, canção de Chico Buarque lançada há quase 40 anos, em plena ditadura militar. O refrão “Pai, afasta de mim este cálice” faz referência à frase de Jesus na cruz, mas também alude, com a homofonia entre “cálice” e “cale-se”, à repressão que imperava naqueles anos de chumbo. Acossados pela censura, artistas precisavam encontrar formas engenhosas de driblá-la para se expressar – e os ouvintes, identificados com a situação, compartilhavam dessa transgressão contra a tirania.
Parece heresia aproximar canções tão díspares, mas pode ajudar a pensar diferenças entre censura e transgressão hoje e antanho. Diferentemente do controle repressivo daqueles tempos, quando microfones eram desligados e artistas, perseguidos, a censura atual é superficial e cínica: encobre na aparência, mas todo mundo sabe o que é dito. Exemplos disso são os biiips em programas de TV ou asteriscos em palavrões escritos: têm aparência de censura, mas mais revelam que ocultam.
A transgressão de Chico e de outros que se opuseram à ditadura – bem como a de sujeitos que, em diferentes lugares e épocas, fizeram resistência a várias formas de violência – deu voz aos que eram oprimidos. Arriscaram sua integridade psíquica e física para enfrentar leis e tabus que perseguiam e excluíam quem não se enquadrasse. Reprimir era regra e transgredir, perigosa exceção.
Nos dias de hoje, isso parece ter se invertido: a expressão individual é não só permitida, mas estimulada – bem como a transgressão. “Não seguir regras”, “pensar e agir fora da caixa”, “quebrar tabus” são exemplos de como somos cotidianamente exortados a transgredir. Deu onda tem sabor de transgressão, por contrabandear um funk para dentro da grande mídia, como se fosse uma vitória sobre a censura. Mas transgride só na aparência: a versão explícita circula livremente e é parte da estratégia de mercado.
A transgressão é fundamental na cultura ocidental, que avança ao interrogar os dogmas que a cada época a regeram. Como transgredir, porém, em tempos em que a própria transgressão virou norma? Transgredimos cotidianamente no trânsito, na relação com as instituições, ao expor tudo o que pensamos para nos provarmos insubmissos ao “sistema”. Mas verdadeiramente transgredir, hoje, talvez seja resistir ao empuxo de agir levianamente sem pensar, em nome de nossa esperteza individualista, contra uma suposta censura que, de fato, é cínica e vazia. No mais das vezes, são transgressões pueris como a de MC G15, cantor de Deu Onda: parecemos transgredir, mas estamos, obedientes, seguindo a onda.
(Em tempo: A Onda é um excelente filme sobre os perigos de, sem refletir, seguir a onda.)