Das surpresas e dos choques produzidos nos primeiros dias com Donald Trump à frente do cargo mais poderoso do mundo, esta talvez seja uma das mais curiosas. Na semana da cerimônia de posse do novo presidente dos EUA, o romance 1984, do autor inglês George Orwell (1903-1950), disparou nas vendas, segundo dados da maior livraria online do planeta, a Amazon, oscilando entre a 7ª e a 5ª posição entre os títulos mais comprados.
Para quem não lembra, 1984 é um romance em que Orwell imagina um futuro no qual o Império Britânico, rebatizado como Oceânia, foi subjugado por um regime ditatorial de partido único. Uma ditadura amparada em hipervigilância estatal e tortura, amparada na figura ao mesmo tempo distante e onipresente do ditador Grande Irmão. Atos de individualismo são desencorajados ou punidos, o aparato repressor escora-se na delação, e um vilão sob encomenda, o "traidor" Goldstein, suposto líder de um exército oculto de conspiradores, é sempre evocado como ameaça para a justificação de medidas repressivas e expurgos convenientes.
Leia mais
A primeira guerra de Trump é contra o jornalismo
Fernando Ferrari Filho: "Mercado pode agir como muro contra os devaneios econômicos de Trump"
Comediantes do Oriente Médio e do sul da Ásia unem-se para resistir a Trump
Pouco disso se aplica ao caso real de Trump, e por um bom motivo que talvez escape a muitos dos que hoje sustentam a comparação entre a obra e a presidência americana: 1984 é, mais do que uma distopia (que se dedica, no extremo avesso à utopia, a imaginar sociedades futuristas em que as coisas foram pelo ralo), uma alegoria de uma experiência totalitária real, a União Soviética sob o jugo do Stalinismo – que Orwell também já havia satirizado no anterior A Revolução dos Bichos (1945).
O Grande Irmão é uma figura de bigode negro, como Stálin. Seu adversário, e desculpa para qualquer medida repressiva, é um expatriado judeu, a exemplo de Trótsky. O partido central controlador é um decalque da violenta máquina repressiva comunista, funcionando a pleno quando o escritor concluiu seu livro (em 1948 – e por isso 1984, ano que inverte os dois números finais). Há outro fator: muitas das ideias lançadas por Orwell em seu romance foram pescadas em outra obra, concluída mais de duas décadas antes, em 1921: Nós, do dissidente soviético Yevgéni Zamyátin (1884-1937).
Fosse uma simples cópia do Stalinismo, talvez 1984 já tivesse desaparecido, como o bolchevismo propriamente dito (Nós, por exemplo, é hoje bem pouco conhecido). A prova do gênio de Orwell está em mesclar essa matéria-prima com elementos de outras distopias da vida real, como o nazismo, e insights próprios sobre o avanço da mentalidade totalitária. O fato de que Orwell também tenha algo a nos dizer sobre Trump é a prova do quanto sua alegoria é percuciente em mapear a ditadura como processo, mais do que como uma versão disfarçada da antiga autocracia comunista.
Um dos conceitos chaves de 1984 é praticamente um tratado de ciência política em forma de metáfora. Ao longo do livro, pensamentos e atos de rebeldia vão se apoderando do protagonista, Winston Smith, um dos principais o incômodo de viver em uma sociedade dominada pelo "duplipensamento", basicamente a linguagem oficial de qualquer político no poder, e que Trump vem tornando uma arte.
"Duplipensamento significa a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas memórias precisam ser alteradas; em consequência, sabe que está manipulando a realidade; mas, graças ao exercício do duplipensamento, ele também se convence de que a realidade não está sendo violada" (1984, Companhia das Letras, p. 252, tradução de Alexandre Hubner e Heloísa Jahn)
Ou seja: com seu romance, Orwell intuiu uma síntese para o uso oficial da mentira como ferramenta política, que se torna mais eficaz quanto maior for a convicção do mentiroso em estar dizendo a verdade, ou em estar servindo a uma causa maior. Claro que esse é tipo de mentira que poderá ser ajustada a fatos se esse ajuste for inescapável, mas não será admitida nunca como mentira.
Trump vem se especializando nesse tipo de mentira desde a campanha – ironicamente, uma das poucas coisas sobre as quais falou sério foi seu programa de governo, que soava ele próprio como distopia. E Orwell também já havia aparecido como parâmetro de comparação no escândalo de espionagem da NSA, na administração Obama.
Sua obra sempre retorna porque, escrita para um regime totalitário, ressoa também em sociedades democráticas que escolhem populistas cuja política oficial é fabricar "fatos alternativos".