A trajetória do longa-metragem Eu, Daniel Blake tem sido discreta, por razões fáceis de entender. O público, majoritariamente, prefere coisa mais leve do que a vida retratada sem glamour. Na obra do britânico Ken Loach, o protagonista infartado aos 59 anos não tem condições físicas, momentaneamente, de continuar em atividade e se vê impedido pela burocracia de obter auxílio estatal. O drama do carpinteiro de uma economia rica é igual ao da maioria de nós, de um país que se inspira no dele para fazer reformas jogando o ônus sobre quem trabalha, sempre preocupado em agradar primeiro a essa espécie de divindade chamada mercado.
Sei de gente que espera há mais de um ano por um simples teste de esteira, pois depende do sistema estatal de saúde para realizá-lo. Você, que me lê, certamente conhece quem já vagou em vão, como o personagem do filme, atrás do seguro-desemprego, de licença-saúde, do remédio de valor absurdamente desproporcional ao salário. Gestores públicos, atenção: tem pouca coisa pior do que maltratar enfermo e desempregado.
O que dizer, então, de quem é convidado a retornar alguns dias depois para conseguir o que poderia ser obtido na hora, e no dia reagendado não pode voltar por alguma razão qualquer? O que pensar de quem fica esperando um telefonema que não vem nunca para confirmar a consulta com especialista, ou chega tarde demais, pois doença não tratada costuma avançar como o mosquito da dengue em água parada?
Eu, Cidadão Brasileiro, sinto muitas vezes vontade de gritar em letras garrafais nas paredes que não sou um número, que não somos um estorvo, que temos um nome, uma individualidade, uma família, um círculo de amigos, uma história, sentimentos... Quem assistir ao filme vai entender melhor como fazer isso – gritar nas paredes –, mas nem precisa. É só olhar em volta e constatar que o escárnio da burocracia estatal para quem depende de serviços públicos não tem a ver com os servidores, em muitos casos também transformados em vítimas, nem com o sistema público de saúde, nem com o de seguridade, mas com prioridades de quem está no poder.
O mercado é o que importa, e tem toda a razão: o Estado provedor não funciona mais. É preciso repensá-lo, desde que seja mesmo para melhorar o atendimento, e isso tem um custo. Eu, Clóvis Malta, reconheço que esse tal mercado lida melhor do que eu com números, principalmente cifrões. Ainda assim, quero ser convencido de que a divisão da conta do sacrifício está certa, pois me sinto trapaceado.