Quando morei em Salvador, há mais de 20 anos, uma expressão recorrente me chamava a atenção. Em diferentes situações, falando sério ou brincando, sempre havia um baiano para falar, com certa impostação na voz:
- Não lhe dei essa ousadia!
Algo na linha de um "não te bobeia", hoje pouco usado por aqui. Seria mais uma das lembranças que se perderiam com o passar dos anos, mas ficou carimbada na minha memória devido a um dos episódios mais nojentos que já presenciei.
Em uma viagem de ônibus a caminho da escola, vi de longe um menino entrar e oferecer aos passageiros doces que vendia. Pagou a passagem, foi até o fundo, retornou e sentou-se alguns bancos à frente do que eu ocupava com meu pai. Logo depois, um homem entre 40 e 50 anos, bem-vestido, camisa alinhada para dentro da calça, entrou procurando um lugar para sentar. Com o ônibus cheio, foi direto até o menino e falou em tom grave:
- Levanta, que eu quero sentar.
Surpreso, o menino respondeu:
- Não vou levantar, paguei a passagem.
Ao que o homem imediatamente gritou:
- Não lhe dei essa ousadia!
E tascou um tabefe forte na cara do vendedor de balas de goma.
Um burburinho começou, poucas pessoas demonstraram revolta, meu pai se levantou e gritou para o homem que viesse bater em alguém do tamanho dele. O "cidadão de bem" desceu na parada seguinte. Enquanto isso, o menino, mais homem do que muitos que presenciaram aquele absurdo, segurou as lágrimas e não se levantou do banco. Era negro. O agressor era branco.
Essa história é um retrato do Brasil - infelizmente, as coisas não mudaram tanto quanto deveriam nessas duas décadas, seja na Bahia, seja no Rio Grande do Sul. O bofetão me faz pensar, desde os meus 10 anos, no quanto nosso país é desigual. Aquele menino precisa de um Estado que o proteja. Se não o protege, que pelo menos tente corrigir a série de desigualdades que ele enfrenta desde que nasceu. Por isso, sou a favor do sistema de cotas raciais. Não me fale de meritocracia em um país onde negro apanha até porque pagou passagem. Não lhe dei essa ousadia.
Pedro Moreira substitui Moisés Mendes, que está de férias
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