As seleções de futebol de Portugal e Uruguai duelavam sobre o gramado em uma partida da fase de grupos da Copa do Mundo do Catar, no final de novembro, quando um homem invadiu o campo. Na frente de sua camisa azul, lia-se a frase “Salvem a Ucrânia”. Na parte de trás, o texto pedia “Respeito pela mulher iraniana”. Para completar, trazia na mão direita a bandeira com as cores do arco-íris que representa a luta do movimento LGBT+.
A multiplicidade de mensagens relativas a temas globais ilustra como 2022 foi marcado por tensões que aprofundaram a instabilidade social, econômica e política do planeta, a exemplo da invasão do território ucraniano pela Rússia de Vladimir Putin ou do levante feminino contra a cultura repressora no Irã. Na avaliação de especialistas consultados por GZH, as turbulências impulsionadas pela guerra, pela elevação do custo de vida e por fatores socioculturais deverão prosseguir no próximo ano.
Faltaria espaço na camiseta do invasor de campo para abordar todos os tensionamentos atuais. O conflito na Europa foi o grande acontecimento internacional de 2022, em razão do elevado grau de violência e pelas implicações econômicas e geopolíticas, que incluíram a migração em massa de ucranianos para escapar do alcance dos mísseis russos, o encarecimento da energia e a escassez de grãos e fertilizantes. Mas o mundo também assistiu a uma onda de protestos que envolveu desde democracias tradicionais como Reino Unido e França até países pouco tolerantes com manifestações desse tipo. Rússia, China e Irã, por exemplo, foram sacudidos por levantes populares raramente vistos.
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) Daniel da Cunda Correa da Silva, todos esses abalos têm pontos em comum.
— Os protestos são resultantes de um cenário que permeia todas as relações internacionais. Há um movimento global que aponta para maior dificuldade em termos de bem-estar das populações decorrente de dois anos de pandemia e acentuada pela guerra. Isso levou a uma elevação do custo de vida em várias partes do mundo, o que deixa as pessoas muito mais suscetíveis a protestar — analisa.
Um estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgado em outubro estimou um salto da inflação mundial de 4,7% em 2021 para 8,8% em 2022, enquanto o crescimento econômico deve recuar de 6% para 3,2%. Esse cenário fez com que, no Reino Unido, milhares organizassem greves ou saíssem às ruas para reclamar de um aumento médio nos preços que chegou a superar 11% em 12 meses e alcançou o patamar mais alto em quatro décadas. O plano fiscal elaborado pela então primeira-ministra conservadora Liz Truss para conter a crise econômica, baseado em cortes de impostos, foi tão mal recebido que abreviou de forma inédita sua estada no cargo. Forçada a pedir demissão, foi a chefe de governo britânica que ficou menos tempo no poder — míseros 45 dias.
Franceses convocaram greve em outubro exigindo aumentos salariais. Na Rússia, manifestantes reclamaram das convocações feitas por Putin para reforçar o front de guerra, enquanto os chineses ousaram desafiar as rígidas medidas sanitárias do governo para aniquilar a covid-19. As mulheres iranianas deflagraram um movimento contra o código comportamental imposto pelo governo fundamentalista após a morte de Mahsa Amini, aos 22 anos, detida em setembro pela polícia moral do país — responsável pela imposição do código de vestimenta islâmico à população feminina — por não usar um véu adequadamente.
Todo esse caldeirão sociopolítico, aquecido pela luta em busca de igualdade de direitos, também ferveu no tórrido deserto do Catar. A disputa da Copa do Mundo foi marcada por críticas e gestos de contrariedade relacionados à intolerância do governo catari com os homossexuais. O código penal do país proíbe o sexo entre homens (não menciona especificamente mulheres) sob risco de prisão por até três anos. A repressão inclui ainda demonstrações públicas de afeto ou a exibição da tradicional bandeira com as cores do arco-íris.
Conflitos devem seguir em 2023
Boa parte das tensões que explodiram neste ano deverá ter sequência ao longo dos próximos meses. O relatório do FMI aponta que “a atividade econômica mundial está passando por uma desaceleração ampla e mais acentuada do que o esperado. (...) A crise do custo de vida, o aperto das condições financeiras na maioria das regiões, a invasão da Ucrânia e a persistente pandemia de covid-19 pesam muito sobre as perspectivas”.
Em relação à guerra, o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) André Luiz Reis da Silva não crê em uma solução próxima.
— Sem um fato novo, vai ficar um impasse. A questão é que ir para a mesa de negociação agora exigiria da Ucrânia reconhecer a perda de parte do território. Inicialmente, analistas previam que Zelensky (presidente ucraniano) ou Putin poderiam cair, mas nada disso aconteceu — observa o especialista.
Para Daniel da Cunda Correa da Silva, três fatores favorecem a continuidade da guerra: a chegada do inverno no Hemisfério Norte, que aumenta o poder de barganha russo como exportador de energia; a dificuldade de Putin para alcançar objetivos estratégicos durante o conflito, como uma conquista territorial mais consistente; e o fracasso em tomar a capital ucraniana ou derrubar a gestão de Volodimir Zelensky. Interromper a ofensiva nessas condições simbolizaria uma derrota.
Reis da Silva aponta que, sob o ponto de vista local, uma das expectativas para o ano que vem será a reapresentação do Brasil na diplomacia internacional, deixando para trás uma política isolacionista que marcou os últimos anos.
— Embora seja preciso tomar cuidado com um certo triunfalismo, há essa ideia de que o Brasil voltará a ocupar um papel internacional de acordo com seu tamanho, sua economia e sua história de relações internacionais. Deveremos retomar uma agenda ambiental, a integração sul-americana e a cooperação com outros grandes países do Sul global, como Índia, China e África do Sul — analisa o professor da UFRGS.
Projeções
- 8,8% deve ser a inflação mundial em 2022, contra 4,7% no ano anterior, segundo estimativa do FMI.
- A perspectiva de recessão deve arrefecer em 2023, que tem inflação projetada para 6,5%
- Em 2024, ainda segundo o FMI, pode-se esperar uma queda ainda maior, chegando a 4,1%.