As manifestações e saques inéditos desde os anos 1960 nos Estados Unidos (EUA) levaram autoridades de diversas cidades a recorrem ao toque de recolher. A ferramenta, considerada polêmica, arrisca alimentar ainda mais os protestos.
Em Nova York, a medida não era aplicada desde a Segunda Guerra Mundial. Em agosto de 1943, um toque de recolher foi decretado por três dias no bairro negro do Harlem, após protestos causados pela violência policial contra o soldado negro Robert Bandy. O homem havia sido baleado por um policial branco, depois de se opor à prisão de uma mulher negra, segundo os jornais da época. Correu o falso boato de que o soldado havia morrido — apesar de ter-se recuperado de seus ferimentos —, o que gerou tumultos e saques que deixaram pelo menos cinco mortos e 500 feridos.
Nos últimos dias, diante dos protestos provocados pela morte do agente de segurança negro George Floyd, em Minneapolis, durante abordagem policial, o toque de recolher foi adotado em diversas cidades. Depois de Minneapolis, Los Angeles, Chicago, Filadélfia e Atlanta impuseram toque de recolher desde sábado (30) , seguidos por Washington, D.C., no domingo (31), e Nova York, na segunda-feira (1º). As autoridades asseguraram que o objetivo não era impedir manifestações, mas evitar a violência e os saques ocorridos em geral à noite.
"Exercício de equilíbrio"
O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, que impôs toque de recolher até domingo (7), chegou a incentivar as pessoas a se manifestarem durante o dia. Inicialmente, De Blasio rejeitou a ideia de aprovar a medida, mas acabou por adotá-la após duas noites de saques.
O toque de recolher é "um ato de equilíbrio", disse à AFP o professor de Justiça Penal Dennis Kenney, da City University de Nova York. Ele explicou que a ideia não é interferir no direito das pessoas de se manifestarem, mas a polícia pode intervir naqueles que causam problemas antes de saquearem ou "fazerem coisas a que todos nos opomos". Ele reconhece, contudo, que os toques de recolher "não são muito eficazes".
Em Nova York, Washington ou outras cidades onde foram instalados, vários manifestantes desafiaram a medida. E, muitas vezes, a polícia optou por não fazer detenções nos casos pacíficos, buscando acalmar os ânimos.
— A polícia não espera que seja respeitada (a medida)— disse Kenney. — É uma ferramenta eficaz para impedir que uma manifestação se transforme em distúrbios violentos, ou para impedir que grupos ou indivíduos saquem — insistiu.
Isso desde que não dure muito tempo, acrescentou o professor. Caso contrário, as pessoas vão perceber a medida como "uma violação de direitos, e o toque de recolher se transforma em um objeto de resistência".
Desigualdades reforçadas
Para Jasmon Bailey, sociólogo da Universidade de Maryland, os argumentos a favor do toque de recolher não são convincentes. Segundo ele, a medida alimenta a violência policial e as desigualdades raciais sistêmicas denunciadas pelos manifestantes, ao dar às forças da ordem poderes ampliados de detenção arbitrária.
— Policiais podem aplicá-lo de maneira seletiva e deter mais pessoas que estão cometendo uma infração que são negras do que pessoas brancas — disse o professor, que é negro.
Como exemplo, ele cita os protestos contra o confinamento que cresceram nos Estados Unidos no ápice da pandemia de coronavírus, apesar das determinações de distanciamento social estabelecidas pelas autoridades. Nesses protestos, os manifestantes eram brancos, em sua maioria, e "seus direitos à Primeira Emenda eram formidáveis, ninguém pensou em impedi-los", completou.
Para ele e para muitos manifestantes que se opõem ao toque de recolher, a medida concentra a atenção nos saques, em detrimento do problema de base do racismo estrutural, que os manifestantes querem erradicar.
Especialistas e autoridades concordam em um ponto: quanto mais longos, mais contraproducentes.
— É a decisão correta por alguns dias — disse o prefeito de Nova York na quarta-feira (3). — O plano é levantá-lo na segunda-feira (8) de manhã, às 5h, e espero nunca ter que usá-lo novamente, se fizermos as coisas corretamente — completou.