As disputas internas no seio da União Europeia abrem novas fissuras no processo de integração já abalado por divergências recentes, como o Brexit, segundo o professor Leonardo Paz Neves, do Núcleo de Prospecção e Inteligência da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Na entrevista, ele comenta as divergências entre as nações do Norte e do Sul que emperram os planos de reconstrução após a pandemia.
Qual o principal entrave para um acordo?
O coronavírus reacende um problema que a União Europeia (UE) está com dificuldade para se desfazer: a grande divisão entre os países do Norte e do Sul. Os países do Sul são considerados mais irresponsáveis fiscais, enquanto os do Norte, mais austeros, mais frugais, que se recusam a ficar pagando a conta da irresponsabilidades dos outros. Os títulos que os famosos maus pagadores, a Espanha, a Itália, obviamente tem um custo muito mais alto. Não só pela trajetória passada deles, mas inclusive pela situação dramática que estão vivendo. Quem vai colocar dinheiro no governo Italiano, no momento em que a economia está parada e tem gente morrendo? É muito arriscado. Quem vai querer comprar esses títulos? Os italianos estão dizendo o seguinte: "Diferentemente da crise do euro, a doença não é nossa culpa". Mais importante ainda, boa parte de vocês só estão conseguindo reagir devido a nossa experiência (em lidar com o vírus). A gente está sofrendo aqui, vocês estão vendo o que está acontecendo, o que estamos fazendo de certo e errado, vocês estão ganhando experiência com isso, estão se preparando melhor". Então, nada mais justo que haja solidariedade. Eles estão propondo, em vez de cada país emitir o seu título, dividir para todo mundo. "Vamos criar um coronabonds, todos os países da zona do euro vão comprar esse negócio". Os alemães, holandeses, estão dizendo: "Não vou ficar pagando de novo a mais para poder dar um título para país que não tem responsabilidade fiscal". Parece haver preocupação de Áustria, Finlândia, Holanda e Alemanha de que países como Espanha, Itália, possam estar se aproveitando da situação para contrair uma dívida barata e não fazer uma reconstruindo organizada, austera.
Mas a proposta do mecanismo de estabilidade econômica, que parecia que ia ser aprovada, tem um custo social muito alto. Não parece justo para nações já dilaceradas pelo vírus.
Tem o problema social, o mecanismo de estabilidade econômica exige muita coisa. Os gregos se enrolaram com o mecanismo e pegou muito mal politicamente. O governo que se associar e buscar nesse mecanismo a solução, certamente vai sofrer internamente politicamente por estar se associando a um mecanismo que é super impopular. O mecanismo já tem uma má reputação de ser um destruidor de empregos, de ser instrumento dos países ricos contra os pobres. É uma bandeira dos eurocéticos: "Olha só como estão esmagando a gente". Talvez se fizesse um outro título com as mesmas características, fosse menos pior. Porque esse já está com péssima reputação. Se pega, é morte política. Dá mais gás para os eurocéticos.
Não é só questão de austeridade pesada, de pegar um dinheiro cheio de condicionamentos. O problema hoje na UE é a dificuldade de confiança mútua. Está voltando a grande divisão entre os países do Norte, mais ricos, mais conservadores, mais responsáveis fiscais, com os do Sul, considerados menos responsáveis.
Do ponto de vista simbólico implode a ideia de UE?
Os italianos estão reclamando muito, falam que toda a narrativa da UE lida com solidariedade, e, quando tem uma situação dessas, que não é culpa de ninguém, está destruindo tudo, uma das piores ameaças que a gente tem desde a Segunda Guerra Mundial, não há solidariedade: "Estão querendo fazer um negócio que pressiona a gente de uma maneira quase irresponsável, compromete nosso crescimento futuro". Não sei se acaba com a UE, mas certamente faz mais uma fissura. Deixa os céticos mais fortes.
O que acaba alimentando nacionalismo.
Sim. Mas é complicado porque, por um lado, a gente espera mais solidariedade, mas poro outro é a terceira vez nos últimos 20 anos que os países mais pobres da Europa vêm com o pires na mão pedir para dividir risco. Pensa com a cabeça do alemão, do austríaco, que estão pagando esse imposto mais alto por causa dos debaixo.
E a ideia de um novo Plano Marshall financiando pela China, por exemplo?
Não tem quem coloque dinheiro. Não tem que esteja comprometido. Não sei se a China vai querer fazer isso. Ela está com seu próprio problema. Está em recessão branca, crescimento baixo. Para o chinês, má performance econômica é risco político. Lá a coisa é grave. Se começam a entregar baixíssimo crescimento, começa a aumentar o desemprego, a ter algo próximo de recessão. Eles têm partido único. Não é como no Ocidente em que se ocorre crise, vota-se de novo e coloca-se outro político no poder. Lá não tem alternativa. Eles tem problema muito grave de entregar baixa performance econômica e alto desemprego porque isso abre espaço para a imensa classe média que cresceu nas últimas décadas começar a questionar o partido. Não sei se os chineses fariam um plano Marshall. Não estou vendo movimento nesse sentido.
O Banco Mundial não poderia financiar a reconstrução?
O problema é que essa crise é global. O Bird colocar dinheiro em país rico pra reconstruir? Deve colocar no Equador, onde está morrendo gente pelas ruas, em país pobre que realmente está precisando e não sabe o que fazer, no Irã que está destruído. Colocar dinheiro em reconstrução europeia pode levar a uma ideia de que quererem acabar com o Banco Mundial. Para que Bird pra salvar gente rica? Os europeus têm condições de se resolver entre eles, eles tem dinheiro para isso. Eles não estão se entendendo. A dificuldade aceitar ajudar o outro um pouco mais porque ele é um pouco mais ou menos responsável com dinheiro. O resto mundo que tem mais dificuldade de fazer isso e vai ver um dinheiro mundial financiar logo os mais ricos? Eu não gostaria de ver isso.
Crises políticas e econômicas na Europa
Plano Marshall
Foi uma iniciativa do governo americano para a reconstrução da Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial. Entre 1947 e 1951, foram aplicados US$ 13 bilhões em 17 países, investimento maciço que contribuiu para as elevadas taxas de crescimento registradas no continente na década de 1950. Naquele momento, havia interesse dos EUA em ocupar o vácuo geopolítico no continente para conter um possível avanço da então URSS.
Do sonho europeu à primeira crise
Em 25 de março de 1967, Alemanha, Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo assinaram em Roma o tratado fundador da Europa política e econômica que estabeleceu a Comunidade Econômica Europeia (CEE), mercado comum baseado na livre-circulação com a remoção de barreiras alfandegárias. Mas só em 1992 foi assinado o tratado de Maastricht, que estipulou a adoção da moeda única, o euro. A primeira crise política foi em 2005, quando franceses e holandeses rejeitaram uma constituição única. Em 2009, o governo grego anunciou um aumento acentuado de seu déficit, primeiro sinal de alarme de uma vasta crise financeira na zona do euro.
Crise na zona do euro
Em parte resultado da crise de 2008, a partir de 2009, vários países da zona do euro enfrentaram dificuldades para pagamento ou refinanciamento de sua dívida pública. Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha estavam em posição mais delicada. Na Grécia, os compromissos salariais do setor público e de pensões impulsionaram aumento da dívida. Os ministros das Finanças europeus aprovaram a criação do Fundo Europeu de Estabilização Financeira e o Mecanismo Europeu de Estabilidade. Dois pacotes de socorro foram aprovados - o primeiro voltava-se exclusivamente à Grécia e somou cerca de 110 bilhões de euros. O segundo foi a constituição de um fundo emergencial de 750 bilhões de euros para situações de crise na UE. Os países mais endividados receberam fundos da UE, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em troca, concordaram em implementar programas de austeridade e reformas, que seriam supervisionados pelos credores.
Reflexos domésticos
Eleitores insatisfeitos com as respostas dadas pelos governos para a crise foram à urnas e mudaram o comando de países como Irlanda, Portugal e Espanha. Na Grécia e na Itália, os governos, também sob forte pressão, renunciaram a seus mandados. Os sentimentos de reprovação às soluções propostas para debelar a crise também deu origem a movimentos como Indignados, que protestava contra distorções geradas a partir do socorro, como taxa elevadas de desemprego e economia em contração.
Onda migratória
Logo após a crise financeira, a UE enfrentou sua pior crise de imigração desde o final da Segunda Guerra Mundial, com a chegada de centenas de milhares de candidatos a asilo. A UE não implementou plano de ação comum para reduzir o problema.
Brexit
O novo golpe na UE veio com a decisão, em 2016, dos britânicos de sair do bloco, após campanha calcada em temas como imigração e economia - justamente porque o país não queria bancar nações mais pobres. Pela primeira vez, um membro deixou a UE, em 31 de março de 2020, mergulhando a instituição em crise de identidade.
Coronavírus
A tragédia devastou países como Itália, Espanha e França, que, juntos, totalizam, 41,1 mil mortos. Companhias aéreas da Europa falam em prejuízo de US$ 75 bilhões e afirmam que a crise coloca em perigo cerca de 5,6 milhões de empregos. Além disso, a organização destacou que a crise do setor aéreo pode se estender a outras atividades, causando impacto negativo de US$ 378 milhões no PIB do continente europeu. A OCDE afirma que a covid-19 poderia reduzir em metade o crescimento da economia mundial em 2020, situando-o em 1,5%, o que poderia levar à recessão de economias. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que até 25 milhes de postos de trabalho em todo mundo estão em risco por impacto direto das medidas de distanciamento social.