O fracasso dos ministros das Finanças da União Europeia (UE) em chegar a um acordo sobre uma resposta econômica comum para reconstruir as nações quando a pandemia passar expõe o racha econômico, político e social entre os países do norte e do sul do bloco europeu. Enquanto as nações do Mediterrâneo, como Itália e Espanha, mais devastadas pelo coronavírus, reivindicam um instrumento de dívida compartilhada, por meio do títulos que ganharam o apelido de coronabonds, países mais ricos, como Alemanha e Holanda, se recusam a se comprometer com um empréstimo conjunto a vizinhos fortemente endividados e com fama de maus administradores.
O abismo entre os dois grupos, explicitado nas 16 horas de reunião que terminou sem resultados concretos nesta quarta-feira (8), abre novas fissuras no sonho de unidade, já fragilizado pela saída do Reino Unido, um dos principais financiadores do bloco, em 31 de março. Mais: revela que interesses nacionais se sobrepõem ao espírito de solidariedade, um dos alicerces da UE, no momento em que o continente enfrenta seu maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial.
Em vez de debater a hipotética dívida compartilhada, os países do Norte preferem buscar o socorro em instrumentos já existentes para enfrentar o golpe econômico deflagrado pela covid-19. Um deles é um fundo de até 240 bilhões que pode ser acessado por meio do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), criado em 2012, durante a crise na zona do euro.
Nações como Itália, Espanha, França, Luxemburgo, Malta e Irlanda rejeitam o resgate desta forma porque, em contrapartida, precisariam se comprometer com duras condicionantes — entre elas, um rígido plano de enxugamento de gastos públicos, reformas da previdência e trabalhistas que embutem altos custos políticos e sociais. Foi este o mecanismo utilizado por nações como Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha no auge da crise pós-2008. Essas nações foram batizadas pelo acrônimo depreciativo Piigs, criado com a junção das iniciais do nome da cada nação e cuja sonoridade, em inglês, se assemelha à palavra "porcos". O alto risco de calote nesses países era considerado por especialistas como ameaça à economia da UE.
A crise do coronavírus trouxe de volta esse medo — Itália e Espanha, com fama de irresponsáveis nas finanças, foram os dois países mais devastados da UE pela covid-19. Na Grécia, por exemplo, foram três planos de socorro, que totalizaram 260 bilhões de euros em injeções de recursos desde 2010. Durante os anos de depressão, o PIB da Grécia recuou 24%. No auge das medidas de austeridade, pensões e aposentadorias foram reduzidas em 40%, assim como o salário mínimo. O resultado foi uma taxa de pobreza de 22% da população. O desemprego chegou a 27,5% em 2013.
— Os gregos se enrolaram com o mecanismo e pegou muito mal politicamente. O governo que se associar a esse mecanismo certamente vai sofrer internamente por estar associado a um mecanismo impopular — avalia o professor Leonardo Paz Neves, do Núcleo de Prospecção e Inteligência da Fundação Getúlio Vargas.
Se, por um lado, parece exagero exigir que nações destruídas pelo coronavírus ainda tenham de obedecer a medidas de austeridade para acessar fundos de reconstrução, por outro Holanda e Alemanha, apoiados por Dinamarca, Áustria, Suécia e Estados Bálticos, nações com rigorosa disciplina orçamentária, entendem que países do Sul poderiam estar se aproveitando do caos do coronavírus para angariar empréstimos a juro baixo.
"É comum Estados adotarem medidas nacionalistas", diz especialista
Para Carolina Pavese, pós-doutora em Relações Internacionais pela London School of Economics e professora da ESPM-SP, as divergências são mais um golpe no processo de integração da UE.
— Em momentos de crise, é comum os Estados se fecharem e adotarem medidas mais nacionalistas. A prioridade são questões domésticas. Já é quase um movimento natural o retorno do nacionalismo, a defesa e priorização dos interesses domésticos em detrimento do coletivo, comunitários da UE — pontua.
Ela compara a discrepância entre os déficit públicos de Itália (136% do PIB) e Alemanha (cerca de 50%) para explicar as razões de os países ricos adotarem uma postura cética — e por vezes egoísta — na mesa de negociações.
— Há uma discrepância muito grande em como esses países têm administrado suas economias. Quando se tem algo tão abstrato como o projeto europeu, é fácil para políticos atribuírem responsabilidade a uma falta de coordenação europeia ou dizer que a UE não está fazendo o suficiente. Mas o contrário também acontece: quando há sucesso em alguma política, os Estados tendem a clamar que isso se deve às medidas que foram adotadas em âmbito doméstico e não em função de projetos que recebem da UE — afirma.
Pelas palavras do ministro português e presidente do Eurogrupo, Mario Centeno, tudo indica que o pragmatismo de Alemanha e Holanda irá vencer a batalha. Ou seja, só terão ajuda os países que fizerem lição de casa fiscal e segurarem os gastos. "Chegamos perto de um acordo, mas ainda não o alcançamos", disse ele, ontem, no Twitter.
A resposta europeia de reconstrução deve se basear em três eixos: os 240 bilhões de euros em empréstimos do fundo de resgate do MEE, 200 bilhões de euros mobilizados por meio do Banco Europeu de Investimento (BEI) em um fundo de garantia para empresas e até 100 bilhões de euros para apoiar o trabalho de meio período. O novo round no Eurogrupo está previsto para hoje.
O que a UE já anunciou
- 12 de março: Banco Central Europeu anunciou medidas de estímulo para ajudar a economia da zona do euro, entre elas o aumento das compras de bônus e uma nova rodada de empréstimos de longo prazo, mas frustrou os mercados financeiros ao não reduzir as taxas básicas de juro do bloco.
- 13 de março: a UE anunciou pacote de 37 bilhões para financiar medidas urgentes de combate ao coronavírus e seus impactos econômicos.
- 2 de abril: a UE anunciou um fundo de 100 bilhões de euros para financiar programas de proteção ao emprego, batizado de Sure (assegurado, em inglês) durante a crise. O fundo permitirá que países com menos acesso a crédito financiem esquemas de proteção a emprego com esses recursos europeus a taxas de juro mais baixas que as que conseguiriam isoladamente. Agora, o que está em discussão é um plano mais profundo e amplo de recuperação pós-pandemia.