Começou como uma teoria conspiratória alimentada por setores ultraconservadores americanos, turbinada pelas redes sociais. Pela visão de grupos de influenciadores do governo Donald Trump, entre eles o ex-estrategista da campanha republicana Steve Bannon e o site Breitbart (espécie de porta-voz da Altright, a nova direita populista), a China teria fabricado o coronavírus como parte de um plano maquiavélico para derrubar os mercados, desbancar a hegemonia geopolítica dos Estados Unidos e ditar a nova ordem mundial.
Depois de minimizar inicialmente os riscos da pandemia, o próprio Trump passou a chamar o coronavírus de “vírus chinês”, não apenas em referência ao local onde a covid-19 surgiu pela primeira vez, mas para responsabilizar o governo comunista pelo aparecimento da doença. No Brasil, esse discurso foi emulado pelo presidente Jair Bolsonaro, por seu filho e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub.
Mas o que era apenas um discurso de setores mais conservadores e ideológicos dos governos Trump e Bolsonaro ganhou corpo com declarações de outros líderes mundiais, como o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, o presidente francês, Emmanuel Macron, e a chanceler alemã, Angela Merkel.
- Acho que quanto mais transparente a China for sobre a história da origem deste vírus, melhor será para que todos nós ao redor do mundo aprendamos com ele - disse a líder alemã.
Na semana passada, uma reportagem do jornal The Washington Post teve acesso a troca de correspondências entre diplomatas americanos na China e o Departamento de Estado. Publicou que uma delegação que visitara, em 2018, um laboratório em Wuhan, cidade onde nasceu o vírus, teria alertado o governo dos Estados Unidos sobre a suposta falta de segurança do prédio. O cenário ao redor da edificação do Instituto de Virologia é perfeito para alimentar a narrativa da conspiração: em meio às colinas da cidade onde surgiu o vírus, a poucos quilômetros do mercado apontado inicialmente como local onde a doença teria aparecido pela primeira vez.
A partir daí a Casa Branca passou a afirmar que está realizando uma "ampla investigação" sobre a origem do coronavírus e a ameaçar a China com retaliações. Uma outra iniciativa partiu da Austrália, que pediu uma apuração independente sobre como Pequim administrou o início da pandemia.
Na segunda-feira (20), o governo chinês afirmou que o pedido australiano “desmerece os enormes esforços e sacrifícios do povo chinês” para impedir a propagação do vírus e rejeitou qualquer “questionamento sobre a transparência da China na prevenção e controle da situação epidêmica”.
Veja o que se sabe e o que ainda é dúvida sobre a origem do vírus e os interesses chineses no tema.
A China fabricou o vírus de propósito?
Não há evidências científicas que corroborem com essa tese. Ao contrário, muitos estudos descartam a hipótese de que ele surgiu, de propósito, em um laboratório. O mais citado foi feito por americanos, britânicos e australianos e foi publicado na Nature Medicine. A equipe liderada pelo Instituto Scrips, em La Jola (EUA), e pela Universidade de Edimburgo (Escócia) esmiuçou o genoma do vírus e o comparou a outros, que infectam humanos e animais. Os pesquisadores viram que o novo coronavírus é natural porque sequenciaram o seu genoma e o analisaram ponto a ponto. Se o seu código genético tivesse sido alterado em laboratório, haveria sinais significativos inseridos nas sequências. Mas não há nada que o diferencia da estrutura dos coronavírus de morcegos comuns. O Sars-CoV-2, seu nome oficial, é o sétimo coronavírus conhecido que infecta seres humanos. Supõe-se que foi dos morcegos que ele saiu, mas não se sabe se diretamente ou se infectou outro animal e deste passou para o ser humano. O governo chinês afirma que teria vindo de um mercado de frutos do mar de Huanan, em Wuhan - o local também vendia animais exóticos, como morcegos.
Pode ter ocorrido um "vazamento" acidental?
Embora testes tenham descartado que o vírus tenha sido criado em laboratório, nos últimos dias ganhou força nos Estados Unidos a especulação de que uma transmissão acidental para cientistas que pesquisavam coronavírus em morcegos poderia ter sido a origem da pandemia. Segundo informações publicas pelo no jornal The Washington Post na quarta-feira (15), autoridades americanas visitaram o Instituto de Virologia de Wuhan em janeiro de 2018, onde pesquisadores investigavam a transmissibilidade de coronavírus de morcegos para humanos. A equipe de diplomatas ficou preocupada com as condições de segurança do local e escreveu duas vezes ao Departamento de Estado, pedindo para o governo americano dar apoio ao laboratório chinês. Na primeira mensagem, as autoridades advertiram que a pesquisa representava “um risco de uma nova pandemia similar à sars". Embora Trump tenha dado entrevistas usando a reportagem como base do argumento para acusar a China, não há evidências concretas de que o vírus tenha “vazado” do laboratório.
Na sexta-feira (17), o governo da França, que em 2004 assinou um acordo com a China para a criação do Instituto de Virologia de Wuhan, afirmou que não há nenhuma prova de que o novo coronavírus tenha ligação com pesquisas feitas no lugar. O diretor do local, Yuan Zhiming, também se pronunciou, negando a hipótese. Ele afirmou à TV estatal chinesa que nenhum funcionário do instituto foi contaminado. Não há evidência sobre a teoria do acidente no laboratório, mas também não há provas reais de que vírus tenha vindo do mercado, como afirma o governo chinês.
Já aconteceu antes de um vírus "escapar", acidentalmente, de um laboratório chinês?
Sim. Em 18 de maio de 2004, a Organização Mundial da Saúde (OMS) expressou preocupação depois que dois cientistas do Instituto Nacional de Virologia de Pequim foram infectados com o vírus da síndrome respiratória aguda grave (sars). Foi depois da pandemia de 2002, que matou quase 800 pessoas. Nesse vazamento de 2004, o primeiro pesquisador foi infectado no final de março, mas o regime chinês ocultou o problema até 22 de abril.
Que laboratório é este?
O Instituto de Virologia de Wuhan fica localizado entre as colinas que rodeiam a cidade de Wuhan. O prédio abriga o Centro de Cultivo de Vírus, maior banco de vírus da Ásia, onde são preservadas mais de 1,5 mil variedades, segundo seu site. Um de seus laboratórios é de segurança máxima, capaz de manipular patógenos de classe 4 (P4), vírus perigosos transmitidos entre pessoas, como o ebola. O laboratório custou US$ 42 milhões e foi concluído em 2015 e inaugurado em 2018. O laboratório P4 tem 3 mil metros quadrados e está localizado em um prédio quadrado em um anexo cilíndrico. A agência de notícias AFP esteve no local recentemente e não observou atividade em seu interior. O instituto afirmou que só recebeu o novo coronavírus em 30 de dezembro e que, até então, ele era desconhecido. Sei Zhengli, um dos principais especialistas chineses em coronavírus de morcegos e vice-diretor do laboratório P4, em entrevista à revista Scientific American, afirmou que o genoma do Sars-Cov-2 não coincide com nenhum dos tipos de coronavírus de morcego que seu laboratório já estudou.
A China sonegou informações?
A China demorou a reconhecer o problema publicamente e mantém níveis altos de opacidade sobre o assunto. Como sofreu a pandemia antes de qualquer outra nação, o país dispõe de posição privilegiada para informar o resto do mundo sobre a doença. Mas mantém várias informações sobre a origem do vírus sob sigilo. Recentemente, alterou o número de mortos - elevando a contagem em 40%. Críticos viram uma prova de omissão, mas Pequim diz que teve problemas logísticos com a notificação no começo da pandemia - o que pode ser verdade, já que vários países, inclusive o Brasil, estão tendo dificuldade na notificação dos casos.
O governo chinês também estabeleceu uma diretiva que institui maiores filtros sobre trabalhos acadêmicos que tratem sobre a origem do vírus - toda pesquisa que tocar no tema precisa passar pelo comitê central antes de ser enviado para publicação por revistas científicas internacionais.
Além de omissão e tentativa de acobertamento, o país é acusado de negligência na gestão da crise em sua origem.
A China responde que sua ação foi decisiva para conter o alastramento pior da doença, adotando uma quarentena em escala sem precedente histórico. Também diz ter notificado os Estados Unidos sobre o surto em 3 de janeiro e que o Departamento de Estado só alertou os americanos que estavam em Wuhan em 15 de janeiro. O primeiro paciente a ser identificado adoeceu em Wuhan em 1 de dezembro. Mas não se sabe quando ele procurou os serviço de saúde nem os detalhes do caso, exceto que ele não tinha vínculos conhecidos com o mercado de Wuhan. No dia 30 de dezembro, o médico Li Wenliang escreveu em um grupo para amigos médicos que uma doença misteriosa afetara sete pacientes e os pusera de quarentena no setor de emergência de seu hospital. Foi só depois do alerta de Li - que sofreu represálias do departamento municipal de saúde por ter mandado a mensagem e precisou assinar um documento dizendo que divulgara informações sigilosas, antes de ele mesmo morrer de covid-19, em fevereiro - que as autoridades agiram. No dia seguinte a sua mensagem, ocorreu o primeiro alerta por autoridades chinesas, que avisaram o escritório em Pequim da OMS sobre a nova doença. Mesmo sabendo da doença, em 7 de janeiro, Wuhan realizou um enorme banquete anual com a presença de mais de 40 mil famílias - esse ponto é visto pelos críticos como prova de que as autoridades não respeitaram a gravidade da ameaça.
A China ganhou dinheiro com a crise?
O Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre do ano indicam que a economia chinesa sofreu um retrocesso histórico. Pela primeira vez desde 2002, a economia se contraiu. O PIB recuou 6,8% nos primeiros três meses, quando comparado ao mesmo período de 2019. A produção industrial da China tombou 13,5% em termos anuais nos primeiros dois meses. As vendas no varejo, uma expressão do consumo, caíram 20,5%. O desemprego passou de 5,2% para 6,2% (o que equivale a 5 milhões de pessoas perdendo seu posto de trabalho em dois meses). A pandemia representa um desafio enorme para a China porque o regime depende do crescimento econômico contínuo para manter legitimidade popular. Os dados econômicos contrariam a teoria de que o vírus vai ao encontro dos interesses chineses, uma vez que a própria sobrevivência do governo depende de a economia crescer. Isso não significa, no entanto, que o governo não minimize ou oculte informações sobre sua origem.
Outro ponto é que a China é o maior exportador de mercadorias do mundo (representando 20% do seu PIB). Se outros países estão imersos em crise, compram menos produtos chineses. Uma crise econômica mundial, portanto, não é vantajosa para o país, mesmo que o valor dos importados caia.
A China vai sair da crise como grande potência?
Há dúvidas entre especialistas. Por um lado, muito pesquisadores afirmam que a pandemia irá acelerar uma tendência de migração do centro do poder global do Ocidente para o Oriente. Seja sua culpa ou não a origem do vírus, a maneira como o país se aproveita da crise para alavancar oportunidades pode fazer a diferença. A China, uma vez superado até o momento o auge da covid-19, tem se colocado como provedor de bens públicos globais, enquanto os Estados Unidos se retraem. O país ofereceu ajuda à Europa em um primeiro momento, despejando equipamentos de saúde no continente fragilizado. Depois, transformou isso em comércio. O país encara a Europa como uma região na qual os EUA estão se retirando, um lugar onde se pode projetar poder e influência.
Por outro lado, se a pandemia abalar a economia chinesa, isso pode complicar a sustentação do regime de partido único. Atingida economicamente, a crescente classe média chinesa pode começar a contestar o governo. A reação veemente de diplomatas chineses a críticas de terceiros é algo inédito. Pela primeira vez, a diplomacia chinesa está respondendo na mesma medida às críticas, como as do deputado Eduardo Bolsonaro e do ministro Weitraub. Essa reação mais assertiva por parte da diplomacia chinesa tem acontecido em outras partes do mundo.
Diante das suspeitas, é melhor para o Brasil ser aliado ou adversário da China?
O Brasil tem a China como seu maior parceiro comercial. E negócios, segundo a visão de experientes diplomatas, não devem ser olhados com lentes ideológicas. Nesse sentido, o pragmatismo é fundamental. Apesar da crise e do retrocesso histórico do PIB anunciado nesses primeiros três meses, em 2020, a previsão é de que a China cresça 1,5%, a menor taxa em mais de quatro décadas. Só não haverá queda, segundo especialistas, porque uma demanda reprimida deverá ser atendida tão logo os efeitos da pandemia comecem a arrefecer. Lideranças do agronegócios afirmam que é preciso ter cautela na forma como o governo brasileiro trata a China, principal destino das exportações agropecuárias. É consenso no setor que o momento é de cautela e pacificação diante das incertezas causadas pela pandemia. Manter as boas relações é palavra de ordem. Em 2019, as exportações do agronegócios totalizaram US$ 99,7 bilhões - a China foi responsável por 35% das compras.