À frente da maior e mais antiga missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU), o general Elias Rodrigues Martins Filho é provavelmente o único alto oficial brasileiro em um front real de guerra. Sob seu comando na República Democrática do Congo estão 15 mil militares de 49 países que tentam pacificar a nação africana convulsionada por centenas de grupos armados e um surto de ebola. Além de evitar matanças tribais, sequestros de crianças para serem transformadas em soldados e coibir estupros, as tropas de paz da ONU são alvo frequente de emboscadas.
O general Elias já ocupou, entre outros cargos, o de chefe de inteligência do Ministério da Defesa do Brasil e o de Oficial de Comando do Batalhão da Guarda Presidencial. É pós-graduado em Relações Internacionais e formado pela Escola Superior de Guerra. É o segundo comandante brasileiro na Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (Monusco) – o primeiro foi Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência.
Direto de Goma, na fronteira entre a República Democrática do Congo e Ruanda, onde está seu quartel-general, ele concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH por Skype.
Como está a situação na República Democrática do Congo?
A missão é de uma complexidade muito grande. É também antiga, porque, nos anos 1960, já tínhamos participação da ONU no Congo, inclusive com destacamento da Força Aérea Brasileira (FAB). Em 1999, a ONU restabeleceu sua presença na região a partir do golpe de Estado que derrubou Mobutu Sese Seko (presidente do então Zaire) e seguido do assassinato do general Kabila (Laurent-Désiré Kabila, presidente entre 2005 e 2007). Havia muita disputa pelas áreas do território congolês. Esse país é riquíssimo em termos de terras agrícolas, em produtos minerais, culturais, mas também é formado a partir de uma decisão colonialista que uniu grupos que nem sempre eram amistosos entre si. Segundo alguns estudiosos, temos mais de 340 grupos étnicos, o que torna muito difícil a missão de governar esse país com harmonia. Há mais de uma centena de grupos armados, que estão desafiando o poder do Estado em áreas ricas de minerais. Alguns dos mais ativos e cruéis são estrangeiros, como as Forças Democráticas Aliadas, um grupo ugandense. Temos outro exemplo que remonta à época do genocídio em Ruanda, que são as Forças Democráticas de Liberação de Ruanda (FDLR), praticamente um exército paralelo que tem como objetivo retornar ao território ruandês e retomar o poder. Esses grupos têm sido financiados pelas próprias riquezas do país e têm conseguido sobreviver por pelo menos 20 anos. Houve progresso significativo. Hoje podemos dizer que 75% do território está estabilizado, mesmo diante de todas essas tensões étnicas. As questões mais violentas estão concentradas na fronteira leste do país, províncias de Ituri, Kivu, Kivu do Sul e Tanganyka.
Onde o senhor está baseado?
Meu quartel-general é em Goma, exatamente na linha de fronteira com Ruanda. Mantive meu subcomandante em Kinshasa para contatos políticos e negociações e decidi permanecer aqui junto ao meu estado-maior. Estou mais próximo dos problemas e das minhas tropas.
Na época em que o general Carlos Alberto Santos Cruz comandou a Monusco, em 2016, as tropas da ONU eram frequentemente alvo de ataques de grupos rebeldes. Vocês continuam sofrendo emboscadas?
É difícil fazermos comparações, porque se trata de duas guerras diferentes. Santos Cruz teve como seu maior obstáculo o M23, grupo armado muito forte e com estrutura, hierarquia e pensamento militares, que tinha como objetivo derrubar o governo e assumir o comando do país. Era praticamente uma guerra convencional, um exército contra outro. Isso fez com que a comunidade internacional identificasse a necessidade do desdobramento de uma brigada de intervenção com poder para operações ofensivas. A partir da inserção dessa brigada e da reconfiguração do mandato da missão naquela época, a Monusco e as forças armadas do Congo conseguiram sucessivas vitórias contra o M23, que, depois de dois anos de combate, veio a se render. Essa cidade onde estou, por exemplo, caiu nas mãos do M23. Estou falando de uma cidade de mais de 1 milhão de habitantes.
Às vezes temos de agir para impedir o recrutamento de uma criança ou impedir o massacre de populações inteiras unicamente por terem origens étnicas diferentes.
Como é a guerra que o senhor enfrenta?
É assimétrica, no meio do povo, com os grupos armados se misturando à população, tornando-se, para nós, muito difícil a identificação. Esses grupos não têm por objetivo conquistar ou manter áreas. Querem controlar o comércio das riquezas para se manter vivos e também se impor diante da população a partir de ações cruéis. Alguns realizam ataques em áreas de minério ou em pequenas vilas, mas não querem manter terreno ou derrubar o governo federal.
E suas forças de paz acabam sendo alvo?
No ano passado, particularmente, fomos alvo de várias emboscadas, mas conseguimos mudar a mentalidade da tropa e colocá-la em uma postura mais agressiva e melhor protegida. As últimas ações contra a tropa da Monusco representaram uma derrota para esses grupos armados. Nos últimos seis meses, praticamente não tivemos ataques contra a Monusco. Temos nos desdobrado na direção dos grupos que estão ameaçando as populações civis. Esses grupos têm como modus operandi atacar vilas, cobrar taxas ilegais, saquear supermercados, farmácias e quartéis. Houve um ataque em setembro, em Ituri, que deixou 29 mortos civis. É uma região rica em petróleo. Há interesse econômico lá. Um grupo armado que estava inativo de repente surgiu com força e capacidade operacional. Essas ações têm sido revidadas pelas forças armadas com nosso suporte, a partir de helicópteros de ataque. Houve um grande número de deslocados. Em apenas um dos campos, há mais de 17 mil civis. Essas mortes às quais você se refere têm ligação com uma ação de elevada crueldade por parte desse grupo armado, que lançou tiros de morteiro contra o centro do campo de refugiados. Você pode imaginar um campo com 17 mil civis, mulheres, crianças, pessoas idosas e um grupo armado bombardear esse campo? Esses acontecimentos nos deixam muito tristes. Esses campos têm sido razoavelmente protegidos pelas tropas da Monusco. Agora, contra tiros de morteiro e de artilharia fica difícil proteger devido à distância a partir da qual são realizados.
Em 2003, terroristas atacaram a sede da missão da ONU em Bagdá, no Iraque. Na ocasião, o brasileiro Sérgio Vieira de Melo, chefe da missão, foi morto, junto a outras 21 pessoas. Como está a sua segurança?
Meu quartel-general está assentado no que chamamos setor central da operação. Tenho uma brigada da Índia responsável pelas ações militares. Guma hoje é relativamente segura. A vida aqui é normal, mas merece cuidados – de uma forma ou de outra somos alvos. Temos algumas restrições de movimento. A partir da meia-noite, o pessoal não pode estar circulando na cidade, por exemplo. Tenho como segurança pessoal dois militares do Exército Brasileiro e sou cercado por dois assistentes de nível coronel e dois capitães que trabalham comigo na assessoria direta. Tenho ainda minha segurança quando requeiro, seja em casa ou nos deslocamentos, provida pelo batalhão do Uruguai. Considero-me protegido.
O senhor tem ido com frequência ao front. Já houve necessidade de confronto?
Sim, temos ido com muita frequência às bases em áreas de maior risco. Essas áreas requerem maior cuidado e é onde precisamos exercer com mais força a liderança e expor nossa visão de como resolver o problema. Durante esses deslocamentos, temos presenciado o início de confrontos, mas nada muito violento, tendo em vista que, quando nos deslocamos, levamos um aparato adicional: helicópteros de ataque, mais soldados. Isso tudo inibe as ações dos grupos armados. Essas bases estão em áreas bastante remotas, ou nos platôs no Sul, ou em áreas de selva. São ambientes próximos do que temos na Amazônia e que requerem cuidado especial tendo em vista as dificuldades em identificar uma ação proveniente do interior da selva.
Recentemente foram deslocados 13 militares brasileiros, especialistas em selva, para o Congo. Qual é o papel deles?
Nossa brigada de intervenção tem como principal objetivo combater um grupo armado que opera no interior da selva há mais de 20 anos. Para eles, o ambiente operacional de selva é bastante familiar, o que não acontece para as tropas da brigada de intervenção. No ano passado, identificamos a necessidade de melhor preparação dessas tropas para realizarem ações na floresta. Tentamos algumas opções, nos reunimos com os países que enviam essas tropas buscando sensibilizá-los da necessidade desse treinamento, mas a comprovação foi de que não houve melhora significativa da preparação. A partir de uma conversa que tive, em 2018, com o general Eduardo Villas Bôas (então comandante do Exército), veio a ideia de desdobrar aqui uma equipe de brasileiros especialistas em operações de selva na Amazônia. O Brasil possui um centro de instrução de guerra na selva de excelência. É respeitado no mundo todo.
Onde eles atuam?
Na região de Beni, onde está a sede da brigada de intervenção. É a região mais problemática, onde há o grupo armado mais violento e que é centro de gravidade do ebola. É uma região com problemas para todos os gostos. As respostas têm sido muito positivas, tanto que agora as forças armadas do Congo também solicitaram o treinamento de três batalhões para operações na selva. Essa presença brasileira é um ponto de inflexão na história das missões de paz.
Por quê?
Porque o treinamento é de responsabilidade do país que envia tropa. Se o Brasil envia um batalhão para uma operação de paz, a responsabilidade de prepará-lo para que seja efetivo é do país contribuinte. Tivemos de quebrar vários paradigmas. Felizmente, está se constatando o quão certo foi essa medida. Hoje, ela é vista com bons olhos por vários países, inclusive pelos que estão recebendo treinamento, que apresentaram, inicialmente, uma reação normal, tendo em vista o próprio orgulho nacional de ver sua tropa sendo treinada por estrangeiros. Mas, felizmente, os objetivos têm sido atingidos. Pela experiência que o Brasil adquiriu nos 13 anos de missão no Haiti, havia a expectativa do envio de tropas para o Congo, mas essa missão foi cancelada pelo governo Temer por razões econômicas.
O senhor lamenta?
Lamento muito. Eu estava aqui como comandante quando, no ano passado, apareceram duas janelas de oportunidade para que o Brasil pudesse contribuir com um batalhão nessa missão. Faria a diferença aqui, pela forma como o brasileiro lida com a população local no ambiente de operação de paz, pelo profissionalismo do nosso militar e, no caso específico da selva, pela expertise que temos. Lamento muito, tentamos duas vezes, mas compreendemos que o Brasil, no ano passado, estava com um problema – que se mantém – orçamentário muito grave e que não seria possível naquele momento contribuir. A Monusco representa uma vitrine para todo o sistema ONU, é um laboratório das boas iniciativas. É a única missão que tem mandato para neutralizar grupos armados. É a única que tem brigada de intervenção. E a única com um grupo de experts na operação treinando tropas para conduzir operações em ambiente de missão. É importante entender que tem havido algum progresso, e a solução não é puramente militar. As forças da ONU criaram um ambiente propício para a discussão política. Mas, infelizmente, por questões diversas, essa solução ainda não pôde ser totalmente colocada em prática. Há hoje muitos grupos armados querendo se render, mas infelizmente não tivemos condições técnicas e até orçamentárias para levar à frente esses programas de desarmamento e reintegração porque o governo precisa estar na liderança desses processos e o governo agora está se estabelecendo no país. Houve eleição em janeiro, o presidente assumiu em março, precisou de tempo para estabelecer a governança. Temos agora boa oportunidade de darmos mais um passo na direção da estabilização e da pacificação do país.
Como é atuar em uma área onde há o risco do ebola? Que cuidados vocês tomam?
Já tivemos mais de 2,2 mil mortes por ebola, considerando apenas o último surto. Está sendo testada uma vacina que tem mostrado 97% de eficácia. Temos várias tropas empregadas nas áreas que são centros do problema, onde o vírus tem se disseminado mais. Determinei que essas tropas fossem vacinadas. É uma medida. As outras também têm sido eficazes. O ebola não passa pelo ar, precisa haver contato. Se você não apertar a mão, não tiver contato físico com alguém contaminado, a probabilidade de adquirir a doença é ínfima. Em áreas onde há ebola, sequer apertamos a mão dos nossos companheiros. Não temos contato físico e estabelecemos medidas preventivas, tais como lavar as mãos ao entrar e ao sair de todos os recintos. O controle é muito eficaz, mas enfrentar o ebola é também um problema de segurança. A doença trouxe uma questão econômica para a disputa, pela quantidade de recursos que foram trazidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pela quantidade de staff que a Monusco teve de desdobrar para aquelas áreas. Houve uma demanda muito grande para aluguel de carro, de casa, terrenos para estabelecer bases. Tudo isso em uma região carente atrai quem quer tirar vantagem econômica do problema. Alguns grupos armados vinham atacando com frequência os funcionários humanitários encarregados de tratar a doença. Chegamos ao pico de mais de 250 humanitários, especialistas, médicos, enfermeiros de todo o mundo, sob a coordenação da OMS e de ONGs. O secretário-geral da ONU nomeou um profissional para ser o coordenador das ações, e com isso passamos a ter mais sucesso. É uma região bastante povoada, essa é uma diferença que temos em relação à Amazônia. A floresta é parecida, mas o povoamento aqui é totalmente distinto. Temos grandes cidades e uma enormidade de vilas espalhadas pela região de selva. Daí a dificuldade de sermos mais efetivos na proteção dos civis. Quando você coloca ao lado disso o número de cortes orçamentários e de tropas que tenho de mandar de volta para casa por falta de dinheiro, vê que minha vida ficou mais difícil.
Há hoje muitos grupos armados querendo se render, mas infelizmente não tivemos condições técnicas e até orçamentárias para levar à frente esses programas de desarmamento e reintegração porque o governo precisa estar na liderança desses processos e o governo agora está se estabelecendo no país.
Muitos países não estão contribuindo. A falta de dinheiro tem sido um problema para a missão?
Sim. Há sucessivos cortes de verbas. Há três anos, havia 25 mil militares; hoje, há 15,4 mil. Agora, vou ter de mandar de volta para casa, devido a um novo corte de orçamento, dois batalhões de 1,5 mil homens.
O senhor é talvez o único alto oficial brasileiro em situação real de front de guerra. Como é essa experiência?
O desafio é o de comandar representantes de mais de 50 países. Tenho mais de 16 batalhões de diferentes origens, e isso exige uma capacidade de liderança muito maior do que nas nossas atividades rotineiras. Essa capacidade de lidar com diferentes backgrounds, aspectos culturais, visões de mundo e diferentes preparos militares nos enriquece bastante. Ao lado disso, temos questões do dia a dia, o fato de testemunharmos situações nas quais vemos grupos armados agirem com enorme crueldade contra a população indefesa. Isso nos comove como pessoas e nos faz repensar valores. Às vezes, temos de agir para impedir o recrutamento de uma criança ou impedir o massacre de populações inteiras unicamente por terem origens étnicas diferentes. Imagino que essa experiência pessoal e a profissional nos faz, não apenas a mim, mas a todos os que têm oportunidade de trabalhar nessa operação, refletir mais profundamente sobre o nosso papel e desejar ao povo desse país que aproveite o momento para que busque uma paz duradoura. Para que se estabilizem esses conflitos e possam ter um futuro melhor. Esse país é muito rico, a população é muito gentil e tem tudo para dar certo, a despeito de todas essas complexidades.
Entenda: os azuis e o Congo
- Ex-colônia belga, a República Democrática do Congo é um país rico em recursos minerais (diamantes, cobre, cobalto, ouro e nióbio), mas um dos mais pobres do mundo (é o 176º entre 189 países no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas).
- A nação foi despedaçada por conflitos nos últimos 20 anos. Por trás desses embates está um conjunto de rivalidades étnicas e brigas por recursos naturais. São mais de 250 grupos étnicos disputando poder e riqueza.
- Foi no Congo que teve lugar a Grande Guerra Africana, o mais sangrento conflito armado desde a Segunda Guerra Mundial. De um lado, o governo de Congo, Angola, Zimbábue e Namíbia. Do outro, os rebeldes do país, apoiados por Uganda, Ruanda e Burundi. Entre 1998 e 2003, essa guerra matou 5,4 milhões de pessoas. A situação segue instável. Existem cerca de 5 milhões de pessoas deslocadas.
- As forças de paz da ONU estão no país desde 1999 buscando monitorar a trégua entre grupos rivais, governo e países vizinhos. Cerca de 300 capacetes azuis, como são chamadas as tropas multinacionais que compõem essas forças, já foram mortos desde então.
- Estabelecidos em 1948, os capacetes azuis já foram enviados a inúmeros países. Em 1988, receberam o Nobel da Paz.