Líder decisivo da ordem mundial, um dos mais longevos donos do poder, o presidente russo Vladimir Putin é um personagem a ser descoberto com mais profundidade no livro As Entrevistas de Putin, de Oliver Stone. A obra, que deu origem a um documentário para a TV, traz o apanhado de quatro longas entrevistas do cineasta com o político, realizadas em encontros de julho de 2015 a fevereiro de 2017. O tempo entre um diálogo e outro permitiu que eles abordassem novos e estridentes fatos que marcaram a história recente, trazendo ao leitor assuntos intensos, quentes na memória coletiva e ainda envoltos em intrigas intercontinentais, como a guerra na Ucrânia e a anexação da Crimeia pela Rússia.
O formato da publicação, ao estilo da entrevista pingue-pongue, a tradicional pergunta e resposta, dinamiza a leitura. Stone é um entusiasta de políticos de esquerda, e notabilizou-se por trabalhos acerca da trajetória de líderes controversos. No seu currículo, constam filmes sobre Fidel Castro, George W. Bush, Richard Nixon e John Kennedy (leia no quadro).
Stone é um admirador de Putin e da Rússia. Não esconde isso em nenhum momento das 329 páginas da obra, apesar de fazer as perguntas incômodas que deveriam ser feitas, sem resvalar para o lado do entrevistador bajulador. É Putin, político, que em muitos momentos segura o ímpeto do entrevistador em criticar os EUA, a quem o russo chama de “parceiros”. Os debates ideológicos, entremeados pela velha dicotomia entre EUA e Rússia do pós-guerra, abrem difíceis questões sobre a personalidade de Putin.
Dividir o mundo entre esquerda e direita já não atende mais à complexidade do estrato social. E isso é latente quando se trata de Putin. Ao longo da entrevista, ele caminha como um equilibrista. Por um lado, se descola de qualquer simpatia pelo antigo regime soviético, que relegou ao país um colapso financeiro e social nos anos 1990. Por outro, faz questão de acenar ao mundo que o povo russo anseia retomar os anos de potência mundial, de vitória sobre a Alemanha na II Guerra, de corrida espacial e de disputa da hegemonia mundial com os norte-americanos. O comunismo, ao passo em que é desdém, também é modelar. Tudo em meias palavras, em um jogo velado.
O objetivo do russo ao conceder às entrevistas a Stone era tentar fazer chegar ao Ocidente outra imagem da sua liderança. Para ele, circula por aqui só a narrativa dos EUA, de um Putin perverso e de uma Rússia maquiavélica. As críticas mais pesadas do líder são à manutenção da existência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), criada após a II Guerra. Para Putin, hoje os EUA manipulam a Otan para avançar na Europa rumo ao leste do continente, colhendo novos aliados e desestabilizando os que permanecem ao lado dos russos. Foi isso o que teria acontecido no caso da Ucrânia. Putin, nesse caso, é mais ousado nas palavras. É objetivo ao declarar que interesses norte-americanos, maquiados em iniciativas de ONGs, atuaram para apoiar grupos de extrema-direita e ultranacionalistas que tomaram o poder na Ucrânia para derrubar o governo aliado russo. Os fatos ocorreram na era Obama.
Putin deixa transparecer que desde 1999, quando chegou ao poder, suas relações sempre foram melhores com o Partido Republicano. Faz mais elogios do que críticas a Bush. E se mostra entusiasta de Trump, a quem felicitou pelos “valores”.
As bases militares, o apoio à Síria, as relações com a Turquia, o Irã e a China. A antipatia pela Arábia Saudita. A guerra cibernética e os tensos bastidores do asilo a Edward Snowden. São assuntos recorrentes e que, por vezes, ressurgem nas entrevistas.
Uma passagem interessante sobre o Ártico: o russo define a região como uma das principais disputas do futuro próximo entre as potências. Não em função de recursos naturais, mas pelo privilégio de dispor das melhores rotas de mísseis no oceano.
As conversas se dão em lugares curiosos do Kremlin, como jardins, e são seguidas de caminhadas nas quais Putin aborda amenidades como a prática rotineira de esportes. O ex-agente da KGB vai à academia, é faixa preta de judô e joga hóquei.
Não faltam os temas mais espinhosos para o russo. Embora fale bastante sobre sua fama de ter liquidado com os oligarcas – alcunha atribuída aos empresários que tomaram conta de estatais e riquezas da Rússia após o fim da União Soviética a troco de banana –, Putin teve de responder aos comentários de ter criado o seu próprio grupo de amigos oligarcas. Parte deles atuou em obras bilionárias em Sochi. As acusações de ter fortunas em contas secretas são mencionadas brevemente pelo entrevistador. E negadas por Putin.
E, claro, é discutido o poder exercido com mão de ferro por ele na Rússia. O parlamento é decorativo, opositores são cerceados, o Judiciário tem independência relativa e Putin persegue os direitos de gays. A figura prevalente na obra, contudo, é a de um líder que está se destacando na política internacional ao mediar conflitos, como no caso da Síria, e que alcança níveis consideráveis de recuperação da economia e da redução da pobreza no seu país. E a Rússia, com Putin, voltou a ser uma fúria militar, impondo sucessivas derrotas ao Estado Islâmico.
LIVRO E FILME
As Entrevistas de Putin, o livro, lançado no Brasil pela editora Best Seller, está à venda por R$ 49,90, em média (R$ 35 o e-book). Já o documentário, que tem quase quatro horas de duração, pode ser visto apenas em inglês, sem legendas, no canal de streaming da rede Showtime, em sho.com (os não assinantes devem pagar uma taxa). Antes, Stone se dedicou a Fidel Castro (no documentário Comandante, de 2003) e Hugo Chávez (Mi Amigo Hugo, 2014), além de fazer filmes ficcionais sobre os ex-presidentes norte-americanos John Kennedy (JFK, 1991) Richard Nixon (Nixon, 1995) e George W. Bush (W., 2008).