Enquanto os crimeanos dançavam pelas ruas em março, tontos com a perspectiva de serem anexados à Rússia, poucos observavam com tanta atenção quanto os moradores do minúsculo enclave montanhoso de Ossétia do Sul que, há cerca de cinco anos, sentiam um êxtase similar.
Em 2008, no dia em que a Rússia reconheceu formalmente o enclave como independente da Geórgia, rapazes se penduraram nas janelas dos carros, tremulando bandeiras russas e molhando pedestres com champanhe. As autoridades sonhavam acordadas em construir uma economia baseada no turismo, como em Mônaco ou Andorra.
Isso não aconteceu. Hoje em dia, a economia da Ossétia do Sul é inteiramente dependente dos fundos orçamentários russos. O desemprego é elevado, bem como os preços, porque os produtos agora devem ser transportados pelo túnel, longo e fino como um canudinho, que separa a cordilheira do Cáucaso da Rússia.
O sistema político é controlado por elites leais a Moscou, de repente com dinheiro suficiente para andar em automóveis pretos reluzentes, embora as ruas sejam esburacadas ou não pavimentadas. Dezenas de casas danificadas na guerra de 2008 com a Geórgia não chegaram a ser consertadas. Dina Alborova, que dirige uma organização filantrópica na capital da Ossétia do Sul, Tskhinvali, afirmou que suas esperanças iniciais foram morrendo aos poucos.
- Durante o primeiro inverno, a gente ainda se perguntava se a guerra havia terminado. No segundo inverno, a frustração se instalara. Quando chegou o terceiro inverno, tudo ficou claro, ela contou.
Quando a Rússia invadiu a Geórgia, repelindo um ataque georgiano e assumindo o controle da separatista Ossétia do Sul e da Abecásia, parecia improvável que o Kremlin estivesse pensando nas consequências a longo prazo.
Como no caso da Crimeia, a guerra foi apresentada aos russos como uma iniciativa humanitária para proteger seus cidadãos e, mais amplamente, como um desafio ao cerco dos Estados Unidos, alinhados à Geórgia. Os canais de televisão cobriram todos os detalhes da intervenção, muito popular na Rússia, elevando os índices de aprovação de Dmitry A. Medvedev, então presidente, ao ponto máximo.
As consequências do reconhecimento, no entanto, causaram à Rússia uma longa série de dores de cabeça. Economistas alertaram repetidas vezes que a Crimeia, se for absorvida, representará um grande obstáculo ao orçamento russo, mas seus argumentos se perderam em meio ao apoio público pela anexação.
Alexei V. Malashenko, analista do Centro Carnegie Moscou, declarou que as autoridades russas ficarão chocadas com os desafios que encontrarão tentando administrar a Crimeia _ reanimar sua economia, distribuir dinheiro e influência a seus grupos étnicos e tentar controlar a corrupção extraordinária que acompanha todos os grandes projetos russos. E, julgando pelo precedente, a euforia pública vai passar, ele garantiu.
- Eu acho que a população russa esqueceu a Ossétia e, se não fosse pelas Olimpíadas, teria se esquecido da Abecásia também. Logicamente, a Crimeia não é a Ossétia. Porém, a popularidade e a tragédia crimeana estarão esquecidas dentro de um ano, afirmou Malashenko.
O presidente da Ossétia do Sul, o ex-agente do KGB Leonid Tibilov, estava entre os primeiros a celebrar a decisão russa em absorver a Crimeia, qualificando-a como o único passo possível para garantir a paz de verdade na região, que é uma condição fundamental para sua futura prosperidade.
Ele tem alguma compreensão da questão. A Ossétia do Sul defendeu durante anos sua absorção pela Rússia, votando nesse sentido já em 1992. A Rússia só foi responder em 2008, ao enviar tanques pela fronteira georgiana e ao reconhecê-la como país independente.
As pessoas ficaram encantadas ao ver os soldados russos.
Os separatistas daqui passaram duas décadas presos no conflito com as autoridades georgianas e tinham uma economia pequena, à exceção das plantações de macieiras e o tráfico de drogas, falsificação de dinheiro e o contrabando de vodca pelo túnel até a Rússia. Tskhinvali estava bloqueada pelas forças da Geórgia, forçando muitos dos residentes a se esconder durante dias em porões, e quando a Rússia reconheceu formalmente a Ossétia do Sul, a decisão foi vista como uma garantia de proteção.
- Finalmente a Rússia reconheceu que existimos e que nós sofremos, um miliciano ossetiano exultou naquele dia. - A Ossétia agradece aos seus defensores, afirmava um grafite na parede de um prédio. Outro dizia: que vergonha, lambe-botas georgiano.
Uma autoridade da Ossétia do Sul perguntou qual seria o próximo país a oferecer o reconhecimento: Sérvia, China, Síria ou Bielorrússia. Nenhum deles a reconheceu.
A Rússia, por sua vez, não poupou esforços em demonstrar o compromisso com a Ossétia do Sul; o maestro Valery Gergiev, com laços próximos ao Kremlin, levou a orquestra inteira do teatro Mariinsky para executar uma sinfonia sob a luz de holofotes ao lado de um prédio em ruínas.
Um pouco desse calor ainda existe. Alborova, diretora da Agência de Desenvolvimento Social, Econômico e Cultural, ainda se lembra de estar no porão da casa com os familiares durante o bombardeio georgiano, com a sensação de que aqueles eram os últimos segundos de vida. Agora, ela disse graças a Deus dormimos em paz.
Porém, meses após o reconhecimento russo, no frio do inverno por trás de janelas de plástico, as pessoas começaram a se perguntar quando os bilhões de rublos em ajuda prometida pela Rússia chegariam até eles. A resposta parece a de que boa parte desse dinheiro foi roubada. Malashenko avalia que 30% da ajuda prometida chegaram a seu destino.
Embora muitos na Ossétia do Sul esperassem a anexação pela Rússia, o Kremlin tem se recusado a pensar nisso, muito provavelmente porque esse se mostraria um fator desestabilizador na turbulenta região russa do Cáucaso, explicou Malashenko. Apesar dos 15 meses de pressão de Moscou, somente quatro nações reconheceram a Ossétia do Sul como país independente, dois dos quais são ilhas do Pacífico com populações inferiores a 15 mil pessoas.
Moscou também fracassou na tentativa de manter o controle político. Quando os tecnólogos políticos do Kremlin tentaram desenhar a vitória do candidato presidencial preferido em 2011 e 2012, tiveram que enfrentar manifestações nas ruas que quase terminaram em agitação civil.
Varvara Pakhomenko, pesquisadora do International Crisis Group, disse que o processo de reconstrução corrupto criou um clima muito crítico em relação à Rússia, e que os ossetianos começaram a reclamar do comportamento dos soldados russos instalados nos arredores de Tskhinvali.
- É cada vez mais comum ouvir pessoas dizendo que a Rússia não está interessada no povo da Ossétia do Sul, que suas opiniões são ignoradas, e agora existe o temor de que se a situação política mudar, a Rússia pode revogar o reconhecimento ou de alguma forma devolver a Ossétia do Sul à Geórgia, ela disse. Segundo a pesquisadora, muitos apostam na esperança de finalmente serem parte da Rússia, o que, no seu entender, resultaria em salários e aposentadorias mais altas. Ainda de acordo com Pakhomenko, muitas pessoas começaram a deixar a região sentindo a impossibilidade de mudar a situação.
Enquanto a Crimeia buscava a anexação, o isolamento da Ossétia do Sul se aprofundava. Moradores de Atotsi, em território controlado pela Geórgia, viram homens em uniformes militares sem identificação construir uma cerca de arame farpado de um metro e meio de altura em meio a uma pastagem, parte de uma barreira de 48 quilômetros que, segundo as autoridades, terminará cercando o enclave inteiro. Num cartaz se lê: fronteira estatal da República da Ossétia do Sul.
Zemfira Plieva, 43 anos, que cresceu na Ossétia do Sul e agora vive em outra região próxima, já cruzou a fronteira várias vezes para vender legumes ou visitar a irmã, e viu com desalento a construção da cerca. Quando a mãe morreu, três anos atrás, ela ficou com tanto medo de ser presa que não compareceu ao funeral. Ao ser perguntada sobre o que aconteceria se a Ossétia do Sul fosse formalmente anexada à Rússia, ela começou a chorar.
- Nunca mais voltarei a ver alguém da minha família. Não quero nem pensar nisso.
Crimeia
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