Wah Thi Ka, Mianmar - Wah Thi Ka é um vilarejo coberto de poeira, sem eletricidade ou água encanada, onde ninguém tem laptop, onde ninguém usa Facebook ou e-mail e onde os moradores doentes às vezes morrem a caminho do hospital mais próximo, porque é preciso percorrer uma estrada de terra longa e muito esburacada para chegar até lá.
Esse é também o marco zero de um novo e arriscado capítulo na vida de Aung San Suu Kyi, a líder do movimento democrático de Mianmar, que está se transformando de dissidente política em candidata a uma vaga no Parlamento.
Defensora internacional da democracia que recebeu o Nobel da paz em 1991, mas passou boa parte das últimas duas décadas em prisão domiciliar, Suu Kyi está morando aqui, e o vilarejo será seu domicílio eleitoral para as eleições no dia 1º de abril. Os moradores desse recôndito obscuro falam como se tivessem ganhado na loteria.
- Eu não posso descrever minha alegria quando fiquei sabendo da novidade. Algumas pessoas dizem que ficarão satisfeitas se puderem ao menos ter a chance de ver Mãe Suu pessoalmente; que elas já poderão morrer em paz - afirmou U Kyaw Win Sein, rizicultor de Wah Thi Ka que está ajudando a organizar a campanha.
É difícil exagerar a popularidade de Suu Kyi em Mianmar, ou Birmânia, como também é conhecido o país. Um encontro de seus apoiadores em Mandalay durante o primeiro fim de semana de março lembrava um Woodstock político, com dezenas de milhares de pessoas enchendo as ruas para saudar sua carreata e se apinhando em um terreno onde ela falou.
Contudo, ao se inserir na briga de facas da política birmanesa, Suu Kyi está colocando em risco um pouco de seu prestígio duramente conquistado. Cada vez mais, pedem que ela proponha soluções para as aflições de seu país, ao invés de apenas lamentá-las. Suu Kyi é uma intelectual consumada que passou as primeiras décadas de sua vida viajando por todo o mundo.
Ser eleita para o Parlamento - supondo que ela ganhe - será o teste definitivo para saber se ela é capaz de ajudar a trazer prosperidade para um eleitorado que só tem acesso a água puxando baldes de um poço.
- Há um elemento de aposta e de risco para ela - afirmou U Thant Myint-U, autor de vários livros sobre Mianmar.
- Uma vez que ela ganhe, e praticamente todo mundo presume que ela irá ganhar, as coisas serão muito diferentes. Ela terá que lidar com uma série de questões, desde as políticas fiscais do governo até a reforma da saúde, para atender à demanda de seus eleitores por eletricidade, por telefones mais baratos e por mais empregos - afirmou Thant Myint-U.
Até o momento, a vida de Suu Kyi tem sido definida tanto por sua persistente rebeldia contra a junta militar, quanto por tragédias pessoais, a começar pelo assassinato de seu pai, o general Aung San, fundador do exército birmanês, em 1947, quando ela tinha apenas dois anos de idade.
Biógrafos e cineastas costumam enfatizar as decisões dolorosas que tomou em sua vida adulta, incluindo deixar para trás a vida confortável na Inglaterra para continuar com sua luta política por democracia em Mianmar.
Seus dois filhos ficaram na Inglaterra e seu marido inglês morreu de câncer lá, enquanto ela se unia à resistência contra o regime militar, que terminou no ano passado, quando um governo pretensamente civil assumiu o poder. A transição da crítica para a política também tem sido complicada para dissidentes em outros países.
Sua carreira poderia seguir a mesma trajetória de Vaclav Havel, que, depois de sua ascensão como intelectual e ativista contra o regime comunista, foi duas vezes eleito presidente da República Tcheca.
Ou ela poderia afundar como Lech Walesa, o grande herói do movimento sindical Solidariedade nos últimos dias do comunismo polonês, que afastou aliados e eleitores, recebendo níveis de aprovação de apenas um dígito nas pesquisas de opinião durante seu único mandato como presidente. Um ponto importante para Suu Kyi, que está com 66 anos, é sua saúde. A incansável campanha eleitoral está cobrando seu preço.
Ela adoeceu durante a viagem para Mandalay, interrompeu um discurso e foi colocada no soro pelos médicos. Seus biógrafos afirmam que ela parece ter herdado a personalidade obstinada do pai, que antes de ser assassinado era cotado para se tornar o primeiro líder da Birmânia após a independência da Grã-Bretanha.
Os que se encontraram com Suu Kyi desde sua libertação da prisão domiciliar no final de 2010 dizem que ela parece destinada a desempenhar um importante papel no futuro político do país.
- Eu não acho que ela queira ser vista apenas como um ícone. Ela é uma democrata que se vê como uma política prática - disse Larry M. Dinger, que foi chefe da missão dos Estados Unidos em Mianmar até agosto do ano passado.
Durante a campanha, ela falou sobre a necessidade de criar mais empregos e de melhorar o sistema de saúde e a educação. Ela enfatiza a importância da união entre as muitas minorias étnicas do país. Mas, na maioria das questões, Suu Kyi raramente se aprofunda em detalhes. Ela brinca em seus discursos que não gosta de fazer promessas.
Ainda assim, Sean Turnell, um dos principais analistas da economia de Mianmar, a descreveu como "fluente na linguagem da economia" e bem versada em questões como microfinanças e direitos de propriedade. O futuro econômico de Mianmar é incerto. Para um país prensado entre as economias emergentes da China e da Índia, a pobreza é impressionantemente generalizada, em especial nas áreas rurais.
A terra é arada por bois; as casas são feitas de palha e bambu. A zona eleitoral onde Suu Kyi está concorrendo fica a duas horas de carro ao sul de Yangon, a principal cidade do país, e não é tão subdesenvolvida quanto outras partes do país. Mas a maioria das regiões continua sem sistema de esgoto, sem estradas asfaltadas e sem rede de telefonia celular.
Os moradores acendem lâmpadas com baterias automotivas, ainda que não se possam ver muitos carros na paisagem. Vários anos de má administração por parte de um governo militar corrupto e incapaz deixaram Mianmar sem um sistema bancário e financeiro que funcione.
Ao ingressar na política em um cenário tão delicado, Suu Kyi está dando legitimidade a um governo dirigido pelos mesmos generais, agora aposentados, contra os quais ela lutou por duas décadas. Se a reforma que está ocorrendo em Mianmar não der certo, Suu Kyi pode ser parcialmente responsabilizada, segundo os analistas.
Mesmo que seu partido, a Liga Nacional para a Democracia, se saia bem nas eleições de 1º de abril, seu poder no Parlamento - numericamente, pelo menos - será pequeno. As 48 zonas eleitorais em disputa são apenas uma fração dos mais de 600 lugares no Parlamento.
- No máximo, ela vai acabar com poucas dezenas de vagas - afirmou Thant Myint-U.
O principal concorrente de seu partido é o Partido da União, Solidariedade e Desenvolvimento, um partido de fachada para a antiga junta militar. Mas também há sinais de fragmentação e insatisfação dentro do movimento democrático como um todo.
- Eu a respeito. Eu gosto dela. Mas ela não é a líder de todas as nossas forças democráticas - afirmou U Kaung Myint Htut, um candidato que está concorrendo contra o partido de Suu Kyi.
- Às vezes pensamos que ela é um pouco egocêntrica - acrescentou, acusando-a de agir como uma rainha que não consulta outros ativistas democráticos.
Bertil Lintner, um dos biógrafos de Suu Kyi, previu futuras dissidências assim que seu partido entrar no sistema político.
- Enquanto eles eram perseguidos e praticamente banidos, eles se mantiveram unidos. Agora que a pressão diminuiu, todos os tipos de conflitos e contradições irão emergir - afirmou.
Não importa quais disputas existam, elas não parecem estar prejudicando a posição de Suu Kyi entre os eleitores.
- Eu sou o chefe da aldeia, por isso é difícil dizer isso diretamente. Mas não vejo qualquer sinal de concorrência - disse U Khin Tint, uma autoridade local em seu distrito eleitoral.