Policiais militares (PMs) recebem de forma quase ininterrupta um benefício para custeio de viagem que deveria ser eventual. O pagamento de diárias para brigadianos que atuam na força-tarefa da Brigada Militar nos presídios, em alguns casos, ocorreu em todos os 365 dias de um ano – sem domingos, feriados, férias ou folgas. A prática, que consiste num improviso institucionalizado, é considerada irregular pelo Ministério Público de Contas (MPC). Apenas em 2016, o repasse para os cerca de 500 PMs que atuam em cadeias do RS chegou a R$ 12,3 milhões. O valor poderia pagar, durante 12 meses, o salário inicial de 220 agentes penitenciários, incluindo 13º.
Entre 2011 e o ano passado, o desembolso acumulado foi de R$ 82,2 milhões. A cifra poderia bancar a construção de duas penitenciárias federais de segurança máxima com 208 vagas cada, como a que foi anunciada para o Rio Grande do Sul pelo Ministério da Justiça.
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A distorção ocorre desde que a BM foi chamada, há 22 anos, para assumir o controle de cinco casas prisionais devido aos os frequentes motins e fugas da época. Em 1995, foi criada a Operação Canarinho, uma força-tarefa temporária que deveria durar seis meses. Supostamente para compensar os PMs que tiveram de assumir funções de carcereiros, o governo passou a pagar diárias corridas. A remuneração, em alguns casos, foi possibilitada por manobras com transferências de unidade que acontecem apenas no papel.
– Essa prática na Brigada já vem há mais de 20 anos, desde o primeiro dia que instituíram a BM dentro dos presídios. Começaram a trazer PMs do Interior ou policiais eram transferidos para outro local nessa questão de vir com a diária, até para compensar, porque a carga de trabalho é diferente, mais desgastante – confirma o mais recente ex-comandante da corporação, coronel Alfeu Freitas Moreira, que passou para reserva no ano passado.
– Como era situação emergencial, digamos assim, comprometendo até a própria segurança pública, houve consenso. Em verdade, se mandava para as unidades do Interior o pessoal que trabalhava em Porto Alegre, e depois, vinha do Interior para cá exatamente porque não existia uma gratificação compensatória para a atividade diversa ao policiamento – completa o também ex-comandante da BM coronel Nelson Pafiadache da Rocha, que esteve à frente da corporação nos anos de 2003 e 2004.
Valor mensal pode chegar a R$ 3,3 mil por brigadiano
Assim, ao ingressar no trabalho em prisões, os PMs passaram a acrescentar aos salários os valores das diárias que, em muitos casos, são lançadas do primeiro ao último dia do mês. O ganho extra mensal pode alcançar R$ 3,3 mil e se estender por anos em somas que, de janeiro a dezembro, chegam próximo de R$ 40 mil.
A reportagem verificou esse quadro ao analisar dados do Portal Transparência do Estado. A partir dos números, foi elaborado um ranking anual dos maiores beneficiados por diárias pagas com recursos da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) e identificado um grupo que, por representar a parcela melhor remunerada do problema, expõe a extensão da irregularidade.
Doze oficiais ganharam até R$ 1 milhão em seis anos
A comparação do ranking de cada ano entre 2011 e 2016 mostra que os nomes de 12 oficiais da BM aparecem ao menos duas vezes entre as primeiras posições. As colocações foram alcançadas justamente em razão do recebimento contínuo das diárias. Juntos, esses 12 PMs receberam nos últimos seis anos R$ 1 milhão em ganhos extras ao salário.
O valor poderia custear a construção de quase quatro centros de triagem (R$ 270 mil cada) para presos provisórios, a exemplo do que está em uso na Avenida Salvador França, em Porto Alegre, com 84 vagas concluídas por mão de obra cedida pelo Exército. Ou serviria para comprar 11 viaturas sedã de policiamento para a BM ao preço de R$ 85.590 mil cada, informado pela corporação.
Nesse recorte analisado pela reportagem, o campeão de presença na lista dos maiores beneficiados por diárias da Susepe é o major Miguel Angelo Souza Godoy, que figurou entre a primeira e a segunda posição do ranking por quatro anos, entre 2012 e 2015. Desde o seu ingresso na força-tarefa até o ano passado, quando saiu para assumir o subcomando do 18º Batalhão de Polícia Militar (BPM) em Viamão, Godoy recebeu R$ 185 mil em diárias.
Outro caso que envolve cifras é o do major Carlos Magno da Silva Vieira, que até o início de 2017 era subcomandante do Presídio Central de Porto Alegre (rebatizado de Cadeia Pública) e, só em 2016, ganhou R$ 39,6 mil em diárias registradas nos 366 dias do ano bissexto.
Pagamentos que só foram possíveis em razão das manobras de lotação (veja mais detalhes clicando aqui), assim como ocorreu – e ainda ocorre – com o atual comandante do Central, tenente-coronel Marcelo Gayer Barboza. Designado para gerir a rotina da maior penitenciária do Estado, na zona leste da Capital, o oficial recebeu R$ 71,5 mil em diárias entre 2015 e 2016 por estar, no papel, lotado em cidade do Interior.
Neste ano, a situação se mantém, e Gayer já ganhou, de janeiro a março, R$ 8 mil em diárias de Santa Rosa para Porto Alegre.
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CONTRAPONTO
O que diz a Susepe:
Informou que o trabalho dos brigadianos nas prisões cumpre a determinação legal que criou a Operação Canarinho "devido a deficiência de pessoal, o que inviabiliza até a presente data a retirada da Brigada Militar" das unidades onde ainda atua. Afirma que não reconhece o pagamento das diárias como incremento salarial e diz que a gratificação criada para substituir os pagamentos não irá consolidar a BM nos presídios por que a situação é "emergencial". Diz que a gratificação ainda não está sendo paga porque na lei que a criou "consta que tal gratificação seria paga pela Susepe, o que legalmente é inviável, pois as gratificações somente podem ser pagas para os servidores penitenciários". Afirma ainda que a designação de quais brigadianos e a partir de quais lotações eles são integrados à força-tarefa é atribuição da BM, que envia mensalmente listagem para realização dos pagamentos.
O que diz a Brigada Militar:
Em princípio, a assessoria de comunicação havia informado, por telefone, que todos os questionamento deveriam ser respondidos pela Susepe. Mais tarde, por email, alegou que "os policiais militares recebem valores atinentes ao seu trabalho. Atualmente, foi criada a Gratificação por Desempenho de atividade Prisional (GDAP), substituindo o pagamento de diárias".
O que diz o tenente-coronel Marcelo Barboza Gayer, comandante do Presídio Central:
Por telefone, o oficial disse que lhe foi dada a missão de estar em Porto Alegre e ele a está cumprindo. Afirmou que a decisão sobre pagar ou não as diárias para os policiais militares é do comando da Brigada Militar, a quem também cabe avaliar se a medida é regular ou economicamente correta. Também não quis opinar sobre se gratificação que irá substituir as diárias manterá a BM em função que não é da corporação. Questionado sobre se seria razoável que ele fosse transferido para a Capital, tendo em vista que sua rotina diária é em Porto Alegre, o tenente-coronel disse que isso não é do seu interesse. Perguntado sobre a razão de ter sido transferido para Passo Fundo e, depois, para Santa Rosa, respondeu "não sei, não tenho a menor ideia".
O que diz o major Miguel Angelo Souza Godoy, subcomandante do 18º BPM:
Por telefone, o oficial afirmou que não pode se manifestar, que apenas cumpre as ordens e que quem deve responder aos questionamentos é o comando da Brigada Militar.
O que diz o major Carlos Magno da Silva Vieira, comandante do 4º RPMON:
Por telefone, o oficial garantiu que todos os pagamentos "ocorreram dentro da legalidade" e que ele "cumpre ordens". Afirma que recebeu nos 366 dias do ano bissexto de 2016 porque só tirou férias, ainda referente ao ano de 2015, em janeiro de 2017, tendo direito, portanto, a 30 dias pelo ano passado e outros 30 pelo ano atual que ainda não foram gozados. Inicialmente afirmou que tirou folgas normais e, depois, questionado sobre ter recebido diárias em dias que não trabalhou, afirmou que ficava "à disposição da força-tarefa 24 horas", além de estar fora do domicílio. Sobre as suas transferências, contestou a informação nos boletins de movimentação e afirmou que não serviu no Departamento Administrativo e não chegou a ir para Tramandaí. Disse que antes de integrar a Operação Canarinho estava servindo em Osório, no Comando Regional de Policiamento Ostensivo do Litoral, onde foi chefe da seção de inteligência.