Uma carta escrita há cerca de 30 anos está entre os pertences perdidos no incêndio que destruiu dois piquetes na madrugada desta quinta-feira (15) no Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre. À tarde, uma retroescavadeira já retirava os destroços das estruturas, que passaram por perícia durante a manhã e apresentavam marcas escuras deixadas pelo fogo.
Os responsáveis pelo Freitas Brasil, um dos galpões consumidos pelas chamas, foram acordados em função do cheiro da fumaça e só tiveram tempo de sair com a roupa do corpo. Eles estavam acampados no local desde o mês passado, por isso, guardavam muitos objetos pessoais no piquete. Tudo foi queimado.
— É uma coisa que infelizmente acontece, mas fica um sentimento no peito. Estou bastante triste. Minha mãe me deu uma carta antes de falecer e não achei, foi o que eu mais senti. Qualquer lugar que eu fosse, levava ela junto, pegava e lia — conta o patrão Luiz Freitas Brasil, 60 anos, que perdeu a mãe três décadas atrás e acampa no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho há quase 25 anos.
O fogo começou por volta das 4h no piquete Amigos do Sul e se propagou até o Freitas Brasil. Ninguém ficou ferido, mas não foi possível recuperar nenhum objeto intacto dos dois galpões.
— Além de perder o galpão, a gente perdeu uma história. Nossos enfeites, as coisas que a gente tinha todos esses anos, se perdeu tudo. Objetos de estimação foram perdidos. Eles (da concessionária do parque, a GAM 3 Parks) estão se movimentando para montar outro galpão aí, mas não vai ser a mesma coisa, o que a gente perdeu não se recupera mais — lamenta Janete Costa Brasil, 60, patroa do Freitas Brasil.
Mesmo assim, a família planeja remontar o piquete após a limpeza do espaço. Também devem permanecer no Acampamento Farroupilha até o final dos festejos. Segundo Janete, todos estavam dormindo quando seu filho sentiu o cheiro da fumaça e acordou. Depois disso, o fogo prontamente consumiu o local:
— Quando ele falou “está pegando fogo”, a parede (do Amigos do Sul) já veio para cima de nós e a parte de cima do mezanino já pegou fogo. Deu tempo só de sair. Nós saímos só com a roupa do corpo. Meu marido saiu de pés descalços, meu filho só com um pé de bota. Estamos sem nada, roupa, colchão, cobertas...
Edison Braz Duarte, um dos patrões do piquete Amigos do Sul, relata que nenhum dos responsáveis estava no parque naquele momento — foram embora por volta das 2h —, mas foram acionados assim que o incêndio começou. Conforme Duarte, que acampa no local há 16 anos, dois freezers, facas, panelas, fogão e roupas são alguns dos itens consumidos pelas chamas.
— Quando cheguei, não tinha mais nada, só o cheiro de fogo. Tudo o que tinha dentro, perdemos, mas estamos bem de saúde, é isso que interessa. Vamos reconstruir, o pessoal vai dar uma barraca para nós e vamos começar tudo de novo, vamos encarar e ano que vem vamos vir mais fortes ainda — projeta o patrão, que tem 60 anos.
Piquetes vizinhos também ficaram danificados. Foram necessários dois caminhões para controlar as chamas no local. De acordo com o primeiro-tenente do Corpo de Bombeiros de Porto Alegre Vagner Silveira da Silva, os galpões estavam com o Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndios (PPCI) regularizado. Silva afirma que a fiscalização é feita antes do início do funcionamento do parque e que o incidente não resultará em mudanças na rotina de vigilância.
Responsável pelo caso, o delegado Paulo Jardim, da 1º Delegacia de Polícia, comenta que uma perícia foi realizada no local durante a manhã para averiguar a causa do incêndio. Também afirma que estão tentando agilizar a finalização desse laudo, mas, enquanto isso, a Polícia Civil vai ouvir vítimas e testemunhas. Até as 15h, quatro pessoas já haviam prestado depoimento e outras três seriam ouvidas no decorrer da tarde.
Clima de solidariedade
Além de todo o Acampamento Farroupilha ter PPCI, cada piquete tem, por obrigatoriedade, uma brigada de incêndio. Ou seja, o local está preparado para este tipo de situação, ressalta Vinicius Garcia, sócio-diretor de negócios da Gam3 Parks, concessionária do Parque. Isso, segundo ele, garantiu que todos agissem com rapidez para que o fogo fosse contido, sem nenhum ferido.
— Estamos sendo muito firmes com a questão das regras de PPCI, que determinam os espaços entre os piquetes. Eles obviamente foram importantíssimos também para não ter propagação. Foi só de um piquete para outro, porque eles eram colados, foi de trás para frente (não para os lados) — comenta.
Garcia acrescenta que todos os procedimentos necessários foram feitos, bem como o boletim de ocorrência, e que, se a perícia apontar que houve algum problema gerado pelo próprio piquete, o mesmo será notificado pela Comissão Municipal dos Festejos Farroupilhas de Porto Alegre. No entanto, destaca que também há uma questão de acolhimento, já que situações como essa podem acontecer em todos os locais.
Sendo assim, a comissão tomou a iniciativa de consertar os três piquetes lindeiros (vizinhos) que tiveram pequenas avarias:
— O espaço dos piquetes é privado, mas decidimos acolher e bancar toda a manutenção e correção dos problemas dos piquetes lindeiros. Isso já está em curso, a madeira já está aí, os obreiros já estão trabalhando. Estamos resolvendo.
A comissão também decidiu fazer um mutirão, com doações espontâneas de valores e utensílios, para apoiar os responsáveis pelos dois piquetes destruídos. Há ainda a ideia de reconstruir os galpões, com a ajuda de patrocinadores: uma empresa doará tendas com piso, outra, os materiais elétricos, e uma terceira, a estrutura hidráulica.
Para reforçar os cuidados previstos no regramento, Garcia afirma que a comissão organizou uma reunião com todos os brigadistas dos piquetes, realizada às 16h.
— Estamos sendo muito rigorosos este ano. O pessoal estava acostumado a um processo por 39 anos e agora teve essa virada de chave com a concessionária e a comissão. Então, no início ficaram meio assim, mas agora estão vendo a importância das regras — diz Garcia.
Apesar da tristeza, o clima atual, resume, é de solidariedade e atenção redobrada.