— A corda tá no olho do boi! Ninguém viu! — preocupa-se Augusto Fagundes, 12 anos, enquanto Bianca Staudt, nove, estranha a textura do couro cru da cobertura da carreta puxada pelos bois Barroso e Queimado, cada um com 1,4 mil quilos.
É assim, entre preocupações com a corda nos olhos dos bois, pupilas estaladas diante do tamanho dos bichos e selfies – muitas selfies – ao lado de cabrestos, rédeas, broacas e cangaias que cerca de 200 estudantes do Ensino Fundamental da rede pública de Maquiné, no Litoral Norte, passaram uma tarde diferente nesta terça-feira (19). Em homenagem à Revolução Farroupilha, comemorada neste 20 de Setembro, o empresário Adelandre de Barcellos Linhares, administrador da Fazenda Pontal, na RS-407, às margens da Lagoa das Malvas, montou um acampamento típico dos antigos tropeiros. Enquanto um costelão assava em fogo de chão, pequenos aprendizes de gauchismo, como Augusto e Bianca, passeavam nas carretas.
Leia mais
A histórica expedição de Garibaldi de Camaquã até a tomada de Laguna
FOTOS: o início da epopeia de Garibaldi em Camaquã
Piquetes se organizam para o desfile tradicionalista
— Tá calor aqui dentro — gritava um.
— Fica quieto e aproveita, meu — dizia outro.
Repetiam um hábito do século 19. Antigo? Nem tanto. Hélio Pereira, o Hélio das mulas, como é conhecido, 64 anos, é um tropeiro do século 21. Ele é o responsável pelo aulão desta tarde, e o professor capaz de atrair o foco para garantir o único momento em que a gurizada ficou silenciosa para escutar causos do tropeirismo.
Até o início do século, era comum esses andarilhos levarem, em carretas puxadas por mulas e bois, produtos como banana e cachaça do Litoral Norte até a Serra. No caminho de volta, traziam vinho, charque e queijo. Sobre as bebidas, uma curiosidade: o mesmo barril que transportava aguardente morro acima trazia de volta vinho, que tinha, obviamente, o sabor adulterado no final da viagem.
— Havia vários tipos de cargueiros. Os mascates, por exemplo, levavam agulha, botão, tesoura, tecido. Eram armazéns ambulantes — compara Helio, que, desde 2004, tem se dedicado a repassar a estudantes de Maquiné parte da cultura do tropeirismo que aprendeu com os pais.
No aulão desta tarde, os alunos aprenderam que o tropeiro carrega 21 itens básicos, entre arreios (cordas de couro que servem para acomodar a carga nos animais, mas também fazem as vezes de travesseiro na cama improvisada com pelego), canecas, bruacas (bolsas onde eram levados os produtos) e cangalhas (instrumento de madeira em "V", onde as bolsas são penduradas, no lombo dos animais). Em baús, tropeiros transportavam até enxovais para as noivas de famílias abastadas. Entre todas as lições, Artur de Souza, cinco anos, estudante da Escola Floriano Peixoto, escolheu aprender o nó do lenço vermelho.
— Tô bonito — concluiu o menino, depois que Helio concluiu a lição, completando o fardamento gauchesco.
No passado, os tropeiros também levavam cartas de uma colônia para outra. Hoje, é Helio quem recebe mensagens em papel, por onde passa transmitindo suas histórias: "Muito obrigado por fazer a nossa semana ser muito especial", dizia a carta de Deize, do 4º ano da Escola Estadual de Educação Básica Lourenço Leon von Langendonck. Ou a de outro aluno do mesmo colégio, que dizia: "Eu te agradeço de todo meu coração. Obrigado por vir aqui trazer todas as coisas dos gaúchos".
Ao ler as cartas, guardadas ao lado de um livro de registros, diário pessoal escrito "com saudade", como diz, Helio enche os olhos de lágrimas:
— O ser humano chegou em um ponto em que tem necessidade de voltar no tempo. A evolução foi tão longe que estamos deixando para trás o nosso lado mais humano.
O tropeirismo
Significa a condução de animais soltos ou de mercadorias em lombos de bois ou mulas. Segundo pesquisadores, foi um ciclo importante da economia e de fixação do homem no interior do país, comparados aos períodos da cana-de-açúcar, do café, do ouro, da borracha e outros. Foram as reduções jesuíticas que contribuíram para as primeiras atividades de tropeiros no continente. Os padres incentivaram o transporte em lombo de mulas entre vários povoados missioneiros. Foram os tropeiros os descobridores dos passos de travessia dos rios, principal obstáculo a essa atividade.